"Sinisdestra" é um livro de contos interligados por um tema comum a todos.
Você encontra as partes anteriores nas postagens antecedentes.
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8.
No início da tarde, Valdir abriu a porta do apartamento surpreendendo
Rogério que não esperava vê-lo tão cedo. O pequeno Francisco largou a caneta,
deixou a mesa de jantar e correu de braços abertos em direção ao recém chegado.
Papai Valdir, que bom que você veio mais cedo para casa,
comemorava a criança.
É, meu filho, hoje o papai chegou mais cedo, falou Valdir
tentando esconder a frustração que sentia.
O papai Rogério estava me ajudando com os exercícios de
matemática, contou Francisco.
Percebendo o desânimo de seu marido, Rogério foi recebê-lo.
Enquanto tirava o terno, afrouxava a gravata e desabotoava o cinto, Valdir não
teve outra alternativa a não ser contar a má notícia. Havia perdido o emprego. Seu
chefe na seguradora disse que a empresa precisava se adaptar aos novos tempos, que
a guerra tinha gerado um volume de pagamento muito grande às famílias
beneficiadas e que apenas uma reestruturação poderia manter o negócio. Entre as
mudanças, estava a extinção do cargo que Valdir ocupava.
Eu não sei como vai ser agora, lamentava-se Valdir. Depois
da ocupação do país, nossa legislação não está mais garantida. Estamos sob as
rédeas dos invasores. O seguro-desemprego está suspenso e provavelmente terei
que aguardar uma decisão do novo governo para saber se receberei minha
indenização pelos doze anos trabalhados para a companhia. Os rumores são que os
desempregados estão tentando se reunir em associações para pleitear o
recebimento dos seus direitos conforme a antiga constituição. Muitos estão
desesperados, porque falam que todo o dinheiro da previdência social e do fundo
de garantia foi usado para pagar a indenização de guerra e o tratado de cessar
fogo. Estou com medo, Rogério.
Os dois homens se abraçaram. Rogério foi à cozinha buscar
um copo com água para o companheiro, enquanto pedia que o cônjuge trocasse as
vestes por outras mais confortáveis. Tão logo serviu o primeiro copo d’água,
Rogério bebeu todo o seu conteúdo de uma só vez. Essa surpresa também o
angustiava. Depois de terem formado uma família estável, essa era a primeira
vez que passavam por uma situação de insegurança como a que se apresentava. Rogério
retornou à sala com o copo cheio. Francisco, alheio ao significado da notícia
trazida por um de seus pais, aproveitava a folga na lição de matemática para
ler uma revista em quadrinhos sentado no sofá. Valdir voltou do quarto vestindo
apenas uma bermuda e chinelos.
E os seus cheques, perguntou Valdir. Quando vão
depositar?
Dentro de uns dez dias, respondeu Rogério. Mas, estão
vindo cada vez menores. O último livro já foi lançado há quatro anos, então o
ciclo de vendas está descendente.
E esse em que você está trabalhando? Já são três anos na
mesma história.
A criação não acontece de uma hora para outra. É diferente
de cumprir ordens dadas por outro. É preciso ter um compromisso com a qualidade
e respeitar o leitor. Não adianta escrever porcarias, é preciso tocar as
pessoas.
Ocasionalmente, os dois tinham alguma rusga em razão do
trabalho de Rogério. Enquanto Valdir cumpria uma rotina pré-estabelecida,
respeitando horários, tendo uma vida conforme os ditames da sociedade que
esperava formalidades e a segurança de um trabalho registrado; Rogério era escritor
de livros de ficção, não tinha um contrato fixo com nenhuma editora, o que o
fazia ter de assinar com uma empresa diferente a cada lançamento. Eram dois
romances e um livro de contos que engrandeciam o seu currículo profissional,
porém, apesar da qualidade de sua escrita, as vendas nunca foram muito
expressivas.
Eu tenho certeza que você vai conseguir outro emprego,
incentivava Rogério. Você tem contatos, trabalhou mais de dez anos na mesma
companhia, tem um bom currículo. Tudo vai dar certo. Entendo o seu medo agora,
mas essa é só uma má fase para superarmos juntos. Além disso, devo terminar
esse romance histórico em até seis meses. Tenho mantido contato com duas
editoras que estão interessadas nos originais.
Você mudou muitas coisas desde a última vez que me
mostrou, quis saber Valdir.
Alterei toda a estrutura do quarto capítulo e fiz
acréscimos na parte que trata da eleição do João Remocaim para o seu segundo
mandato como deputado nacional. Fiz pesquisas nos arquivos dos jornais e em crônicas
da época, e acabei descobrindo tramoias de chantagem e coação política. Um dos
cronistas insinua que muitas prisões foram preventivas para diminuir a força da
oposição.
Esse é um tema delicado, ressabiava-se Valdir. Ainda mais
no atual contexto político.
Você viu a primeira página do jornal de hoje, perguntou
Rogério.
Ainda não tive tempo.
Rogério mostrou a Valdir a notícia de que o novo governo estava
ponderando acabar com alguns dos direitos adquiridos na antiga constituição. Com
a concordância do ministro João Remocaim, os invasores se mostravam contrários
ao casamento de homossexuais e à adoção de crianças por famílias não
constituídas por membros de distintos sexos biológicos.
É um enorme retrocesso, exclamou Valdir. Nosso país é
considerado um pioneiro em respeito às individualidades, e agora querem
destruir todo o nosso livre pensamento com a imposição de suas regras
estrangeiras.
O texto do jornal destaca que todos os casamentos entre
homossexuais e as adoções podem ser anuladas, acrescentou Rogério. Você sabe o
que isso significa, não é? Agora somos apenas um território de um país maior, e
são as leis deles que nos regem.
Com o olhar apreensivo, Valdir não conseguiu expressar
nenhuma palavra. Os dois se abraçaram. Francisco largou a revista em quadrinhos
que lia, e correu na direção deles. O menino, com seus braços, envolveu as
pernas dos dois pais.
Amo vocês, papais, disse o menino. O mais importante é
que temos muito amor nesta família.
nossa.... lindo.... tenho amigos que vivenciam situações semelhantes, o que mais me perturba é a intolerância dos que não conseguem simplesmente aceitar que o Amor é Amor, seja em qualquer forma que se apresente. Aspiro para que chegue o dia em que o gênero não seja o guia para os direitos de todos, e que as pessoas possam aceitar com compaixão os demais, independente de suas escolhas individuais.
ResponderExcluirMuito bem colocado, Marinheira. Obrigado por prestigiar o meu trabalho. Abraço.
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