"Sinisdestra" é um livro de contos interligados por um tema comum a todos.
1.
Você
já reparou como nestas terras bate um vento diferente? Olhe para os galhos
dessa árvore aí em frente. Está vendo como estão pendendo para o leste? São
ventos para a direita. Repare. Já está mudando. Agora os galhos pendem para o
oeste. Cá estão os ventos para a esquerda. Esse sacolejo não é coisa de ciclone.
É coisa daqui, destas terras. Já veio cientista tentar explicar que tem a ver
com a pressão, com o vale, a geografia, a velocidade. Acho que nem eles se
convenceram ainda. Todo ano tem gente estudando esses ventos. Vem gente da
universidade, vem gente falando estrangeiro. São anos de gente dando
explicações, desde quando eu era novo. Se soubessem a verdade, bastava dizer
uma vez só.
Percival
concordava com a cabeça e bebericava mais um gole de pinga. Esse vento parece
que já nasceu bêbado. Aprendeu que só assim para suportar essa vida.
Seu
Maneca riu do gracejo do outro. Propôs um brinde à nova amizade e riu
novamente. Eles conversavam como se fossem velhos conhecidos, mas as
circunstâncias os levaram a travar conhecimento um do outro há poucas horas.
Seu Maneca era antigo frequentador do Bar da Praça, principalmente, depois da
aposentadoria, quando praticamente se mudou para o botequim mantido pela Dona
Conceição e o Seu Leopoldo. Já Percival ia regularmente ao Boteco da Nação, o
acanhado estabelecimento do finado Castro, um militante esquerdista de ideais
comunistas. O fim de Castro, comentava Percival, foi finalizado por interesses
políticos. Até mesmo nesta terra esquecida, os divergentes incomodam os
poderosos. Muitos acusavam, poucos defendiam, quase ninguém tinha coragem de
falar abertamente, então isso era mote para conversa de bar, de salão
paroquial, de barbearia e salão de beleza, e o que se dizia é que João Remocaim
era o mandante de tamanha brutalidade. Mas, o homem está lá no ministério,
confraternizando com os invasores e vivendo no bem bom, completou Percival.
Esse
sempre quis o bem bom dele. O povo é que vive lascado, concluiu Seu Maneca. O
povo tem o tamanho da sua voz. Voz pequena nunca é ouvida, disse Percival antes
de virar o copo de cachaça.
Mais
uma. Seu Leopoldo se aproximou e serviu mais uma dose para cada um dos recém
chegados companheiros. O ministro João Remocaim só está preocupado com o povo, se
intrometeu o dono do bar na conversa, enquanto fazia o serviço de garçom. Se
não fosse ele, imaginem a carnificina neste país. Os invasores matariam a todos
nós. Que a alma do finado Castro siga em paz, mas não é hora de levantar
bandeiras e se voltar contra o defensor do povo. Nosso exército foi dizimado e
o país anexado. Todos perdemos filhos e netos na guerra, mas ainda nos resta um
bocado de dignidade, melancolicamente acrescentou Seu Leopoldo.
Os
dois fregueses se olharam por alguns segundos e abriram as bocas em risos
contidos, afinal não queriam ofender. Seu bom Leopoldo, é por isso que o seu
bar ainda está aberto e o senhor ainda vive, declarou Seu Maneca.
Percival,
vou te contar. Sabe a Isaura Remocaim, a mulher do ministro? Foi a minha
primeira namorada, disse Seu Maneca logo antes de beber do copo cheio
novamente. Então, você e a mulher do homem..., deixou incompleto o outro. Faz
muitos anos isso, nunca chegamos aos finalmentes, porque ela era moça direita
com pai muito severo. Tomamos banhos de rio, beijos estalados e de língua. Ela
gostava. Uma vez peguei no peito dela e levei um empurrão. Da segunda vez, ela
deixou, mas nunca passou disso. A Isaura, que era Imaculada de batismo, nome de
solteira, tinha treze anos na época e eu só um a mais. Ela não gostava, nem a
família dela, de eu ser pobre e filho de lavradores. A família Imaculada também
trabalhava a terra, mas queria que as filhas casassem com industriários e ricos
comerciantes. Eu não era nem uma coisa nem outra.
Pobre
só tem lugar no mundo dos ricos para produzir o que eles querem e não conseguem
sozinhos, argumentou Percival. A pinga descia ardendo pela garganta.
Olhe
o vento mudando de novo. Esse está sempre certo, nunca bate de frente com nada,
sempre vai para onde tem que ir, observou Seu Maneca. Os Remocaim já eram posseiros
daquela pedreira perto do rio. Desse negócio fizeram fortuna. Os três filhos
foram estudar nos melhores colégios, ficaram metidos, mas o João gostava das
rodas com os músicos das praças, dos jogos de bola e de usar roupas caras para
se mostrar para as meninas. Muitos garotos tinham inveja dele, mas eram
conquistados com presentes. Lembro que ele deu um instrumento novinho para o
velho Chico Violeiro, aquele desdentado que tocava músicas tradicionais do
tempo dos avós, também comprou tacos e bolas e fez a alegria dos meninos. Ele
sempre conseguiu comprar o que queria e ser amigo das pessoas certas na hora
certa. Nós já fomos amigos na juventude, coisa de dois anos, quando jogar na
praça era a coisa mais importante daquela vidinha simples. Era uma espera a
semana toda para que as aulas pela manhã acabassem, que o trabalho na terra
terminasse, que o sábado chegasse para arremessar e correr atrás de uma bola
com os outros meninos. O João Remocaim era o dono da bola, ou aquele que tinha
dado bolas para os outros, então era respeitado. Foi conduzido unanimemente ao
posto de presidente do nosso clube de bola, que fundamos em um ano e fechamos
no outro. Foi nessa época que eu percebi quem ele realmente era. Nunca mais fui
amigo dele. Embora, se ele saísse um pouco da Capital e pusesse de novo os pés
nestas terras, tenho certeza que ele diria que somos velhos amigos. Tenho
certeza disso, é a cara dele.
O
que aconteceu entre vocês, quis saber Percival, com uma cara de quem está
prestes a descobrir um segredo.
Três
militares uniformizados do exército invasor entram no bar e se sentam em uma
mesa no fundo do Bar da Praça. Instantaneamente, todos os olhos ficam voltados
para o chão e o único ruído que se ouve é dos passos lentos do Seu Leopoldo se
dirigindo à mesa dos militares com um cardápio na mão.
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