"Sinisdestra" é um livro de contos interligados por um tema comum a todos.
Você encontra as partes anteriores nas postagens antecedentes.
4.
A
torneira a pingar em intervalos regulares servia como prenúncio de uma tortura
física ou psicológica que estava por vir. De certo não se sabia o que esperar
do novo governo. A lei marcial imperava e a antiga constituição havia sido
abolida com a anexação após a derrota na guerra. Nem mesmo juristas e
magistrados saberiam enumerar os direitos dos cidadãos na atual condição em que
se encontrava o país. Mais uma gota estalava contra a pequena pia da cela da
penitenciária. As paredes mofadas da alcova não tinham sido preparadas para receber
uma autoridade como aquela que a ocupava.
Depois
de passar a noite em claro, o senador Afonso Constante via a luminosidade solar
passar paralelamente às grades da janela que o mantinham recluso. Após ter sido
buscado em sua casa na manhã anterior, quando membros do exército invasor o
levaram com o propósito de tomar o seu depoimento, o importante político ainda
não havia sido ouvido. Depois de ter de se despir e colocar um uniforme da
prisão, foi deixado em uma cela à espera de um investigador que ainda não o
havia procurado. A expectativa já durava mais de vinte e quatro horas. A
apreensão e o nervosismo afetavam a pressão arterial desse homem de setenta e
um anos. Nenhum auxílio médico haveria de socorre-lo se fosse necessário.
O
senador fitou a porta da cela quando a tranca começou a ser aberta. Um
investigador acompanhado de dois soldados armados ordenou que o prisioneiro
seguisse-o até a sala de interrogatório. O trajeto custou a ser vencido, pois o
passo vagaroso do senador Afonso Constante lhe parecia a via-crúcis com outros
personagens em outro tempo.
Senhor
Afonso Constante, o senhor sabe por que está aqui, perguntava o investigador.
Qual
é o seu nome? Quero saber quem vai tomar o depoimento de um senador da
república, respondeu o outro.
O
senhor não está autorizado a conhecer a minha identificação, redarguiu o
investigador. Saiba também que devido ao fechamento do congresso, o senhor não
é mais um senador da república.
Isso
é uma afronta aos direitos, uma afronta à democracia e aos meus eleitores que
me nomearam como seu representante na casa legislativa, exaltou-se Afonso
Constante.
O
depoimento se estendia por horas. Roncos abdominais emanavam do depoente que
não havia se alimentado desde o modesto jantar na prisão. O cansaço da noite
não dormida começava a pesar sobre o seu corpo enfraquecido. Ele pediu uma
pausa para se alimentar e descansar um pouco, mas ouviu como resposta que a
autoridade ali era outra. Somente parariam os trabalhos quando estes fossem
conclusos.
A
insistência do investigador em questionar sobre os planos dos congressistas
destituídos em contatar países do norte em busca de auxílio bélico e
diplomático era dificilmente assimilada pela cabeça zonza de Afonso Constante.
Por três vezes, pediu que o outro fizesse o favor de parar com aquilo. Ele
ficou atônito com a atitude do investigador. Enquanto a sua face ardia, não
conseguia acreditar que agente do exército lhe dera uma bofetada no rosto. Um
homem de setenta e um anos apanhando de outro que poderia ser seu filho quiçá
seu neto. Se deparava com a gravidade da situação. Qualquer coisa que
acontecesse naquela penitenciária não teria conhecimento do mundo.
Deixe-me
falar com o ministro João Remocaim, pedia Afonso Constante. Ele poderá explicar
tudo. Vamos encerrar esse mal entendido. O ministro irá esclarecer qualquer
ponto que não pareça inteligível. Nós somos amigos e companheiros do mesmo
partido. Tudo o que eu não tive capacidade de esclarecer, o meu amigo poderá
fazê-lo.
Por
telefone, o investigador falava com o ministro João Remocaim. O prisioneiro
acompanhava com olhos e ouvidos atentos o desenrolar daquela conversa que se
estendia à sua frente. Na porta da sala, os dois soldados armados estavam
impassíveis formando uma barreira intransponível. Quando o relógio da sala de
interrogatório já marcava dez minutos de conversa telefônica, o investigador
começou a fazer as despedidas e tencionava desligar o aparelho. Afonso
Constante se precipitou sem pensar sobre o telefone e tomou-o da mão do investigador.
Remocaim,
me explique o que está acontecendo, disse aturdido. O desgraçado desligou. O
desgraçado desligou o telefone na minha cara.
Está
bem claro quem é e quem não é seu amigo, sentenciou o investigador. O senhor é
acusado de conspiração contra o novo governo, de terrorismo, de formação de
quadrilha, de chefiar insurgentes, de conduta criminosa, de ser uma ameaça à
estabilidade nacional, de ter um pensamento subversivo, de conspirar contra a
integração do território conquistado ao poder dominante e de tentativa ilegal
de pedir auxílio internacional.
Você
só pode estar brincando, algumas dessas acusações nem são crimes, contestou
espantado o incriminado.
Uma
nova bofetada na cara o fez tombar. No chão, Afonso Constante sentiu uma
solidão nunca experienciada anteriormente.
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