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Mostrando postagens de agosto, 2013

A zona de amizade

        Havia um impasse, uma insegurança típica daqueles que foram além dos seus limites e não sabem como voltar. Era uma daquelas situações em que muito havia sido dito, em que as palavras excediam os olhares e davam uma complementaridade a cada gesto de modo que não se podia esquecer. Era uma ilusão tentar negar o que havia acontecido. Os adultos não podem simplesmente se esconder em uma toca e esperar que o mundo pare de girar. Por mais que haja situações para as quais jamais se tenha sido preparado, a vida exige um protagonismo que talvez não emergisse fora de instantes limítrofes, mas assim são as surpresas, como se diferenciam as boas e as más recordações. Eles se olhavam apreensivos depois de uma conversa, que se transformou em discussão, depois em conversa novamente, e um pouco de negação, autoacusação, desculpas, arrependimento despontaram ao longo de pouco mais de trinta minutos em que a relação era discutida.          Que merda, eu te amo, disse Sidnei, reconhecendo in

Uma noite para a memória

             A luminosidade de um amanhecer ensolarado penetrava pelas frestas da persiana. Tentando puxar o lençol para cobrir o rosto, Verônica não conseguia mover a coberta, porque estava presa sob o corpo de Fred. Depois de olhar o adormecido que havia conhecido na noite anterior, procurou pelo relógio, mas não conseguia decifrar o enigma dos ponteiros sem suas lentes de contato. Tateou pela mesa de cabeceira e encontrou o seu telefone celular. Trazendo o aparelho bem próximo dos olhos, viu que eram 7 horas e 3 minutos. Péssimo horário para despertar em um sábado pela manhã, logo após uma madrugada que fora longa e repleta de atividades. Verônica levantou-se, cansada, precisando de descanso, pisou em uma camisinha usada que estava jogada no chão, e correu a cortina branca para tentar escurecer o quarto. Um pensamento recriminador lhe ocorreu ao lembrar que esse tipo de cortina servia para a sala de estar, mas não para o quarto. Iria providenciar uma que tivesse um tecido mais espe

A minha montanha-russa me leva para bem longe de você

     Penso na vida como uma montanha-russa, embora a ideia de uma roleta-russa também seja apropriada. Em trinta anos, já vivi tantos altos e baixos que, na média, minha vida seria uma pacata planície. Uma verdadeira bobagem, por isso não acredito em gráficos. O sabor da vida e da desgraça está no cume do prazer e no fosso do sofrimento. Não há nada mais triste do que ser normal – toda a mediocridade de querer ser aceito como todos os outros me dá náuseas. A História é feita dos extremos, porque é isso que fascina o espírito humano: a dialética, o maniqueísmo, a ilusão de que há o bem contra o mal, a falácia de que o anverso do amor é o ódio.      O primeiro looping a me lançar para o alto foi o meu nascimento, ou como gosto de pensar: a minha estreia. Primeiro filho de imigrantes russos, a gélida e inebriante Mãe Rússia é a minha pátria avó, mas conheci o mundo a partir destas terras tropicais em que a estética do calor dita as regras de comportamento de seu povo. Em meio aos pe

"Sinisdestra": 14

"Sinisdestra" é um livro de contos interligados por um tema comum a todos. Você encontra as partes anteriores nas postagens antecedentes. 14. Embora as palavras lhe chegassem instantaneamente pelo telefone, o tempo estava cindido entre o instante presente e as inúmeras recordações do passado e os arrependimentos que agora o acometiam, os mesmos dos quais tentava fugir usando a desculpa de sempre poder realizar amanhã. Entendia estar sempre ocupado, mesmo para o futuro pedia que retardasse a sua chegada, pois tinha no hoje sempre o compromisso mais importante. O amanhã chegara antes do que era esperado, subvertendo toda uma ordem que não existia, uma ilusão sustentada em alguns elementos da rotina para entender o caos que é viver. Diante dele o futuro do qual se escondia se apresentava com a roupa do presente, que logo estaria velha e desbotaria como tudo que é perecível. A diretora do asilo confirmava pelo telefone que a mãe de Daniel Mendonça havia morrido às seis