"Sinisdestra" é um livro de contos interligados por um tema comum a todos.
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15.
O amplo estúdio em que a
banda ensaiava agora era uma memória dolorida do passado deles, de
um tempo em que podiam lotar todas as casas de espetáculos da
região, quando o alto cachê os fazia esquecer a comum história de
uma infância pobre. Terminada a guerra, a população procurava
diversão novamente, mas dessa vez já não podia pagar caro pelas
atrações, com isso os artistas medíocres consolidavam as suas
reputações de entretenidores, o que, por ora, bastava para amainar
o sofrimento das pessoas. Satisfeito por não ter perdido nenhum
integrante do grupo durante os conflitos, Miguel Boafé, saxofonista
e líder da banda, se reunia com seus colegas mais uma vez nos fundos
de um cinema abandonado, onde o proprietário cobrava uma taxa de
baixo custo para que pudessem ensaiar. Sonhando com a volta ao
sucesso de outrora, Miguel Boafé fazia planos para superar as
dificuldades do momento, no entanto, se apresentar em circos com
lonas furadas ou remendadas, restaurantes em que ele se negaria a
comer ou em funerais de militares não contribuía para aumentar a
autoestima da banda.
Sentindo-se pressionado
pelos integrantes do grupo, Roberto Batista, o empresário
responsável pelos negócios do sexteto já havia sugerido que
passassem a contar com um cantor, tentando, desse modo, atingir novos
ouvintes, um público mais acostumado com um tipo de música mais
popular. No entanto, a descaracterização do som do conjunto era um
tema bastante polêmico entre os músicos. Metade, incluindo o líder,
entendia que deveriam seguir a diante, se abrir às novas tendências,
conquistar aqueles que os consideravam técnicos e fora de moda;
porém, os demais entendiam que haviam construído uma reputação e,
por isso, não podiam renegar as convicções estilísticas duramente
sustentadas no passado em nome de um modismo passageiro. Apesar do
racha, todos estavam inseguros para dar um passo para fora da banda.
O nome do Miguel Boafé Sexteto Maravilha era muito forte na história
da música nacional, tanto que o próprio líder que dava nome ao
grupo não tinha certeza de se sustentar em uma carreira solo sem o
pianista Mendonça de Andrade e o baterista Leonardo Moreno. Para
Miguel Boafé, infelizmente, esses dois músicos, os reconhecidamente
mais talentosos da banda, antagonizavam com a sua posição. Após
duas décadas de apresentações e muitas sessões de gravações,
estavam diante da maior crise da carreira.
Um telefonema no meio de uma
tarde morosa para Roberto Batista encheu o empresário de esperança.
Com a mão esquerda, ele anotava as instruções em seu bloco de
anotações, enquanto a outra segurava o aparelho perto do ouvido. Ao
encerrar a ligação, vibrou, deu socos no ar, fez passos de dança,
repetiu o mesmo palavrão três vezes e agradeceu aos céus.
Vislumbrava o retorno em grande estilo do Miguel Boafé Sexteto
Maravilha aos grandes espetáculos, aos melhores teatros, abandonando
de vez qualquer apresentação sob uma lona. No entanto, sabia que
seria difícil convencer metade dos rapazes, portanto, precisaria
usar de toda a sua habilidade persuasiva para tirar não apenas o
grupo, mas também os próprios pés da lama. Secretamente, estava
desesperado, nunca expressara os seus temores aos outros, tinha medo
que enxergassem a sua fraqueza, enquanto tanto se esforçava para
parecer uma fortaleza que nunca conseguiu se sustentar. Se antes
empresariar o grupo musical o ocupava de tal maneira que já pensava
em uma aposentadoria confortável, após a deflagração da guerra e
a mudança no mercado de entretenimento, Roberto Batista tinha
passado a se ocupar também da carreira de ventríloquos, engolidores
de espadas e ilusionistas que, invariavelmente, o abandonavam em
favor de outro empresário após o primeiro lampejo de sucesso.
Voltar a se dedicar apenas ao meio musical era não apenas uma
necessidade, mas também uma afirmação de sua competência, uma
declaração inequívoca de que não tinha perdido o faro para o
sucesso.
No dia seguinte, quando o
grupo mais uma vez estava reunido nos fundos do velho cinema
abandonado, o empresário pediu ao líder da banda um minuto para
conversarem distante dos demais. Miguel Boafé entendeu imediatamente
e compartilhou da empolgação de Roberto Batista, porque ambos
vislumbravam um retorno aos melhores dias, quando não precisavam
economizar nas refeições nem nos presentes para os familiares,
quando pagar a pensão para uma ex-esposa não significava terminar o
mês comendo apenas pão com ovo cozido seguido por um copo d'água
da torneira. Porém, Miguel Boafé rapidamente percebeu que não
seria fácil convencer o pianista e o baterista a tocarem na festa de
aniversário da neta do ministro João Remocaim, por quem sentiam
asco após tantas manobras políticas e tramas que sempre o
mantiveram no poder. Decididos a explicar a grande oportunidade que
tinham diante de si, o saxofonista e o empresário tornaram a se
reunir com os demais músicos.
Temos uma chance de ouro,
disse Miguel Boafé com uma voz vibrante. É a oportunidade de
aparecermos novamente na televisão, nos jornais e nas revistas.
Podemos levantar o nome do Miguel Boafé Sexteto Maravilha de novo às
alturas.
O burburinho demonstrava a
agitação e a curiosidade daqueles homens. Parar de abrir o
espetáculo dos palhaços e dos domadores no circo? Era exatamente do
que precisavam para recuperar a confiança como ótimos
instrumentistas que eram. Foi Leonardo Moreno quem insistiu para que
acabassem com o mistério e contassem logo qual era a novidade.
Conforme o previsto, o grupo rachou em desacordo. De um lado, o
saxofonista, o baixista e o percussionista aceitavam de bom grado se
apresentar na festa na mansão dos Remocaim; porém, o pianista, o
baterista e o guitarrista expressaram a contrariedade assim que o
nome do ministro foi mencionado.
É apenas a festa de
aniversário da netinha dele, argumentou Miguel Boafé. Isso não é
problema nenhum. Vamos lá, tocamos, fazemos pose para a televisão,
depois vamos embora.
Eu não quero nenhuma
aproximação com esse traidor da pátria, disse exasperadamente, com
o punho fechado diante do rosto, Mendonça de Andrade.
A argumentação quando a
paixão e o ódio importam mais do que o dinheiro é muito difícil.
O empresário sentia esgotar todos os seus argumentos, enquanto
notava crescer uma barreira ao redor de cada músico. Naquele
momento, não havia harmonia nem ritmo que os fizessem se entender,
porque cada um somente ouvia os próprios argumentos e as suas
necessidades. A discussão se tornava cada vez mais uma disputa entre
aqueles que defendiam a integridade artística, musical e cívica do
grupo e os que estavam preocupados em pagar as contas ao final do mês
e a manter a família com dignidade. Vencido pelo cansaço ou pela
necessidade, o guitarrista aceitou se apresentar diante do político
que tanto desprezava. A partir desse desequilíbrio de forças,
restavam dois de um lado contra quatro do outro.
Todos queremos melhorar a
nossa situação, argumentou Miguel Boafé. Somos uma equipe e temos
que decidir juntos o que for melhor para a banda.
Nós também existimos em
separado, respondeu Leonardo Moreno. Há coisas que são intoleráveis
na vida.
Você é o baterista mais
talentoso que eu conheço, disse Miguel Boafé. Sei que você quer
voltar a vencer na vida. A chance está novamente diante de você.
A questão é saber até
aonde você iria para vencer na vida, respondeu Leonardo Moreno.
Um silêncio constrangedor
tomou conta dos seis músicos e do empresário. Ninguém queria
mencionar, mas todos tinham conhecimento de que o irmão do baterista
havia desaparecido após liderar protestos contra a nomeação de
João Remocaim para assumir o ministério da Integração Nacional
logo após a assinatura do tratado de cessar fogo e da formalização
da anexação do país. Portanto, todos sabiam que não havia maneira
de convencer Leonardo Moreno a se apresentar diante do principal
suspeito do desaparecimento de seu irmão. Em uma última tentativa
de resolver o impasse, o baixista fez uma sugestão fora de hora: a
de que votassem.
Sim, concordou Miguel Boafé.
Sejamos democráticos. Quatro músicos se mostraram favoráveis e
dois contrários. A maioria vence.
É isso o que você chama de
democracia, perguntou Mendonça de Andrade com um tom irritadiço na
voz. Impor o que é intolerável à minoria? Se a maioria quiser ir
tocar nesse maldito aniversário da neta do demônio, que vá, mas
que contratem outro pianista.
E outro baterista também,
afirmou Leonardo Moreno.
Rapazes, interveio o
empresário. Ele não pode ser tão ruim assim, até eu já votei
nele.
Porque você é um idiota,
responderam no mesmo tom e ao mesmo tempo a dupla contrariada.
Diante de cinco homens
silenciosos, Mendonça e Leonardo deixaram o estúdio improvisado,
deixaram o grupo, deixaram para trás duas décadas de uma história
junto ao Miguel Boafé Sexteto Maravilha. Eles sabiam até aonde
iriam para vencer na vida. Há limites que não podem ser
ultrapassados.
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