"Sinisdestra" é um livro de contos interligados por um tema comum a todos.
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11.
Com
os olhos escrutinadores mirando os livros expostos na vitrine, o exemplar
desejado ainda não havia sido localizado. Muitas obras haviam sido retiradas do
mercado desde o acordo de cessar fogo. Anexado ao inimigo histórico, o país,
por meio das alianças entre antigos ocupantes do governo e novas lideranças
invasoras, pretendia reescrever a própria história. Consultando o relógio de
pulso, Joaquim Leão percebeu que ainda faltavam dez minutos para a abertura da
loja. Atravessou a rua e foi beber um café na padaria, enquanto aguardava os
minutos em que as portas liberariam a sua entrada. Ouviu de soslaio a conversa
que vinha do balcão, onde o proprietário do negócio e um cliente discutiam os
rumos políticos do país. Não havia um consenso sobre ter evitado uma aniquilação
maior em uma guerra já perdida ou aguardar o apoio de organismos internacionais
que interviessem no conflito. Concordavam apenas que muitos que já estavam no
poder eram os menos prejudicados com o destino da nação.
Quando
saía da lanchonete, Joaquim Leão viu, do outro lado da rua, as portas da
livraria se abrindo. Foi à estante intitulada Biografias procurando por um livro
proibido sobre o ministro João Remocaim, escrito por um jornalista morto em
situação suspeita durante a guerra. Na condição de livro impedido de venda e
circulação, não seria tão simples encontrar aquela obra. O jovem notou que a
prateleira dedicada a contar a vida de pessoas públicas e notórias estava
bastante esvaziada.
Por
que há tão poucos livros na seção Biografias, perguntou Joaquim Leão a uma
vendedora que se aproximava.
O novo
governo proibiu a venda de todos os livros que abordassem a vida de políticos
do nosso país, respondeu a moça. Inicialmente, apenas as biografias dos ocupantes
da antiga administração, que permaneceram com cargos na atual, foram banidos
das lojas, como aquele que trata da trajetória de João Remocaim; no entanto,
recentemente, todos foram proibidos.
Agradecendo
a explicação da vendedora, Joaquim Leitão circulou entre as prateleiras de
livros de jornalismo, História e política. Erguendo os olhos de um dos livros
que folheava, percebeu a entrada de Homero Gentil, um senhor de 76 anos,
proprietário da livraria. Os dois já se conheciam há muitos anos, pois desde os
onze anos, Joaquim Leitão frequentava aquele repositório de ficções quase factuais
e verdades quase inverossímeis. Cumprimentaram-se com a alegria do reencontro. Para
o idoso era muito bom ver o jovem amigo inteiro e saudável. Dois de seus netos
haviam morrido em ataques do exército inimigo. Joaquim Leitão, agora perto dos
19 anos, recém havia completado 18 quando a guerra se encaminhava para o seu
término.
Fiquei
na base militar e passei por treinamento, disse o jovem. Participei de apenas
uma batalha, na qual abasteci as armas dos combatentes mais experientes.
E o
que você está fazendo agora que as universidades estão fechadas, perguntou
Homero Gentil.
Um
jornalista, mesmo em formação, está sempre buscando novidades e se apoiando no
passado, respondeu o jovem. Com a interrupção do curso de Jornalismo, comecei a
escrever alguns dos relatos que presenciei no período da guerra, mas não estou
gostando do resultado desse trabalho. Estou planejando elaborar um
livro-reportagem com os personagens desse conflito que tornou o nosso país
apenas uma colônia ou um território anexado de outro. Por isso, preciso da ajuda
do senhor.
O
proprietário da livraria ouviu a explicação do estudante, que expunha a
necessidade de ter acesso à biografia proibida de João Remocaim e de outros
políticos nacionais. Um impedimento arbitrário não permitia que tais livros
fossem negociados. Tocado por um sopro de ânimo que há muito não sentia igual, Homero
Gentil declarou o quanto desejava o sucesso do rapaz. Os mais velhos, dizia
ele, estavam cansados da política e das armações feitas em nome dela. A direita
e a esquerda se diferenciavam no discurso; entanto, se confundiam nas práticas.
Os esquerdistas, ou sinistros, eram mais conservadores do que os seus
opositores quando estavam no poder; do outro lado, os direitistas, ou destros, se
mostravam mais engajados em movimentos sociais de fachada do que os adversários
quando ocupavam os cargos do poder executivo. Essa confusão de papeis, uma
confluência de dois posicionamentos em uma só maneira de fazer política, foi
chamada de sinisdestra pelo velho livreiro. Se conseguisse escrever o livro que
tanto almejava, Joaquim Leão já sabia que título usar e a quem homenagear.
O senhor
não pode me vender clandestinamente um exemplar da biografia de João Remocaim,
perguntou o jovem.
Se
o fizesse, disse o velho, eu teria o meu negócio fechado e terminaria os meus
dias nos porões carcerários desse governo bélico e invasor.
Desapontado,
Joaquim Leão entendia que a sua obra dificilmente deixaria de ser um bom
projeto, mas não havia respaldo e fontes bibliográficas suficientes para torná-lo
real. Diante do abatimento do outro, foram para uma sala isolada. Homero Gentil
buscou, dentro de um cofre, um exemplar do livro proibido. O brilho no olhar do
rapaz era o mesmo de quem descobre pela primeira vez a sensualidade das
mulheres. Aqui, disse o velho, está um trabalho que custou a vida ao seu autor.
As palavras lidas por quem não quer enxergar são armas perigosas, instrumentos
que ferem quem escreve e quem é descrito. Manuseando o livro como se fosse uma
obra sagrada, o jovem entendia o privilégio único de contemplar algo que à sua
geração (e às posteriores) era sonegado.
Já
li três vezes, disse Homero Gentil. A cada leitura, fico mais espantado com o
que há nessas páginas. Quer que eu faça um resumo para você?
Adoraria
ouvir o relato do senhor, respondeu.
Após
ser o presidente-fundador do clube esportivo da cidade, quando tinha por volta
de 16 ou 17 anos, já envolvido em suspeitas de apropriação do pouco lucro da
instituição, João Remocaim foi eleito e assumiu como vereador aos 18 anos de
idade. Até hoje é o mais jovem representante municipal eleito no país. Reeleito,
se tornou presidente da câmara aos 22. As denúncias de participação em um
esquema de recebimento de propina de negociantes de materiais de limpeza foram
abafadas pela base governista do município. Com a vacância do cargo de
prefeito, morto em um motel com a amante suicida, conforme a história oficial,
apesar de nenhum laudo confirmar essa hipótese, João Remocaim se tornou o chefe
do executivo em sua cidade natal. Seguiu no mandato ao vencer a eleição
realizada dois anos depois. Apoiando-se em uma propaganda política que o
transformara em defensor dos pobres e dos oprimidos, chegou ao cargo de
deputado por sua região. Embora tenha legislado como um conservador, manteve a sua
boa imagem com os trabalhadores ao implementar acréscimos aos seus rendimentos.
Mesmo já sendo uma figura reconhecida regionalmente, retornou ao seu município,
onde foi eleito prefeito pela terceira vez. Foi acusado de desviar a verba das
escolas públicas para os prostíbulos locais; no entanto, afirmou que não sabia
de nada, por isso o secretário particular foi o único responsabilizado nesse
caso. Tinha apenas 34 anos nessa época.
A qual
partido João Remocaim estava filiado nesse período, perguntou Joaquim Leão.
Sempre
envolvido com o partido que detivesse o poder, respondeu Homero Gentil. Durante
todos esses anos, apenas o partido direitista governou na base eleitoral de
João Remocaim. Com a certeza da impunidade, em seu novo mandato como prefeito,
ele construiu um novo bairro para abrigar os mais pobres. Tornou-se uma espécie
de messias para essa gente, que não se importava com o escândalo do desvio de
verbas públicas. Para erguer uma nova vizinhança foi gasto o equivalente a sete
bairros surgidos do nada. Estava garantida a votação que o levou a ser eleito
deputado nacional a seguir. Durante o seu segundo mandato na capital do país,
foi nomeado, pela primeira vez, ministro da nação. Foi acusado de favorecer alguns
laboratórios farmacêuticos e cassar a licença de outros que não estavam ligados
aos seus interesses pessoais, porém não chegou a ser julgado. Aos 46 anos, enfrentou
a primeira reviravolta política. Eleito para um terceiro mandato como deputado
nacional, deixou o ministério quando a centro-esquerda chegou à presidência. Em
vez de se juntar à oposição, seus antigos aliados, João Remocaim se transformou
em uma figura de articulação e diálogo entre os inimigos históricos. Surpreendendo
a todos, no ano seguinte, o governo esquerdista o nomeava ministro mais uma
vez.
Sempre
no poder, ponderou Joaquim Leão.
Essa
é a meta de João Remocaim, sentenciou Homero Gentil. Para agradar os novos
senhores do poder e aos seus eleitores que o olhavam com desconfiança, ele
criou as leis trabalhistas como as conhecíamos até antes da invasão inimiga. Nessa
ocasião, ele deixou de ser o “paizinho dos necessitados” de suas terras para se
tornar essa figura em escala nacional. Aos 50 anos, foi eleito senador no mesmo
escrutínio que devolveu a presidência aos direitistas. No ano seguinte, João
Remocaim estava ocupando mais uma vez um ministério da nação. Sofrendo pressões
internas do partido, articulou um movimento que pretendia restringir muitos dos
benefícios que os trabalhadores alcançaram no governo anterior; contudo, essa
manobra não surtiu efeitos. Com a manutenção das leis trabalhistas, voltou a
ser exaltado como o defensor dos pobres. Descontentes com a direita, o povo,
nessa constante dança de partidos que troca os rostos do poder, mas pouco faz
para melhorar o país, conduziu a centro-esquerda novamente à presidência. Em seu
segundo mandato como senador, João Remocaim foi acusado de chefiar a compra de
votos de parlamentares para se beneficiar da venda de ações da companhia estatal
de minérios, que passava por um processo de privatização. Mais uma vez, o
julgamento não foi realizado, o que lhe permitiu assumir outro ministério no
governo no ano seguinte.
Ele
nunca quis ser o presidente da nação, perguntou Joaquim Leitão.
Se
o fosse, perderia essa capacidade escorregadia de se infiltrar nas brechas do
poder, respondeu Homero Gentil. Não se engane, meu jovem, apesar de nunca ter
sido presidente, João Remocaim governou esse país como quis por mais de 25
anos. Sem essa liberdade para se grudar aos poderosos como um sanguessuga, ele
estaria acabado. Entretanto, aos 58 anos, quando o povo, sem rumo,
desesperançado, sem distinguir quem estava ao lado de quem, mais uma vez
alternou o poder e elegeu os direitistas para a presidência, o terceiro mandato
como senador de João Remocaim começava envolto nas suspeitas de que ele era o
mandante da emboscada no congresso de historiadores da capital. Nada foi confirmado,
porque provas foram roubadas de dentro do departamento de investigação. Oficialmente,
acusaram um grupo radical de nosso país vizinho. Abafado o escândalo, dois anos
depois, passou a ocupar um novo ministério. Aos 62 anos, o partido de direita
tentou convencê-lo a disputar a presidência, porque temia que a centro-esquerda
retomasse o poder nessa alternância que vinha se tornando costumeira. Depois da
recusa, João Remocaim aceitou ser o vice-presidente na chapa. A sua presença no
palanque garantiu o voto dos trabalhadores e dos mais pobres. Ao lado do
gabinete presidencial, ele viu de perto o crescimento do interesse estrangeiro
em nossas terras. A sua omissão resultou em uma falta de preparo para o
enfrentamento. Isso sou eu quem está dizendo, você não vai encontrar neste
livro, mas acredito que o João Remocaim já havia percebido a fragilidade de
nossas forças armadas perante o poderio do inimigo. Paralelamente à guerra, tenho
certeza que ele negociou um acordo que lhe fosse favorável.
Esse
homem é um câncer para a nação, exaltou-se Joaquim Leão. Criou um mito entorno
de si, deu ares messiânicos à sua personalidade, e conduziu o país para a
dominação estrangeira.
Com
pouco mais de um ano ocupando a vice-presidência, continuou Homero Gentil, ele assistiu
a nação ser derrotada em uma guerra-relâmpago, um massacre que exterminou mais
da metade dos homens adultos de nosso país. Meus netos estão entre esses
mortos. Essa carnificina teve dois vencedores: os invasores estrangeiros e João
Remocaim, que foi nomeado ministro da Integração Nacional. Graças a ele e à
propaganda do novo governo, temos que nos contentar em fazer parte de um grande
poder internacional, um país de maior grandeza no mundo. Ora, eu digo que
somente não somos grandes porque temos um povo que entrega seu voto para
políticos desse quilate. No final, somos todos responsáveis por nosso destino.
Depois
de um silêncio triste, o jovem Joaquim Leão agradeceu e abraçou o velho pela
atenção que lhe fora dedicada. Deixando a livraria sem ter podido comprar o que
tanto desejava, o estudante parou na calçada e ouviu o estômago roncar. Enquanto
decidia se comeria um pastel na lanchonete do outro lado da rua ou se almoçaria
em casa, ouviu uma voz de mulher chamando o seu nome.
Joaquim,
espere, gritou a vendedora. O senhor Homero está vindo para falar com você.
Caminhando
vagarosamente, o proprietário da livraria foi ao encontro do jovem. Com o livro
nas mãos, Homero Gentil parou em frente ao rapaz e abriu um sorriso.
Estou
impedido de lhe vender este livro, disse o velho. No entanto, a lei não me
proíbe de lhe presentear. Vá, meu jovem, e conte à tua geração e às próximas
que virão, que nós sabemos. Deixe o mundo saber que nós sabemos.
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