Sentado
em uma cadeira de madeira, os pés apoiados em outra igual logo à
frente, o descanso em sua terra natal chegava ao sétimo dia. Sem
camiseta, vestindo apenas uma bermuda encarnada, grandes óculos
escuros, que lhe tapavam metade do rosto, e chinelos com uma pequena
bandeira do Brasil, a pele enegrecida de António Poeta brilhava ao
sol do verão de Luanda. Dentro de três dias teria que rumar
novamente para a Espanha e se apresentar ao clube para os
treinamentos preparativos para a disputa do segundo turno da liga de
futebol. Embora ainda adorasse a prática esportiva, depois de seis
anos morando na Europa, o jogador sentia um pouco de pesar por deixar
o verão africano e retornar ao frio de Madri.
O
irmão caçula, Daniel, aproximou-se e puxou uma cadeira ao lado de
António. Para o mais moço, o outro era um exemplo, um ídolo que,
antes dele, havia
habitado o mesmo ventre em que fora gerado. Daniel olhava admirado
para o irmão e imaginava os grandes estádios tomados por apoiadores
ou adversários; os voos internacionais cruzando os ares do
continente mais rico do planeta; os hotéis luxuosos em que os
esportistas ficavam hospedados; nas mulheres conquistadas como
troféus ao longo dos campeonatos. António, por sua vez, após
brilhar nos gramados de Portugal, e agora da Espanha, ao retornar
para Angola, pensava na desigualdade social, na frágil e recente
democracia de sua terra de origem, no pouco investimento em saúde e
educação para os mais pobres, nas obras de infraestrutura que
faltavam no norte do país, nas denúncias de corrupção que
envolviam o governo. As temporadas vividas na Europa haviam
alimentado uma preocupação que o acompanhava desde a juventude: o
sofrimento do seu povo advindo da guerra civil, da fome e da miséria.
Nascido no continente berço da humanidade, via seus irmãos
africanos privados de avanços vividos por europeus, asiáticos e
americanos. No subúrbio de Luanda, ele sonhava com uma Angola de
cultura pujante e crescimento científico.
Um
dia quero ser como tu, afirmou Daniel.
António
Poeta disse que não, que o irmão fosse diferente. Sem reconhecer a
enorme importância que tinha para o seu povo, o jogador de futebol
pediu que o caçula se dedicasse aos estudos, que encontrasse uma
maneira de ser importante pelas verdadeiras razões. Sem compreender
muito bem, Daniel pediu uma explicação. A bola, disse António, é
chutada todos os dias. Não podemos ser tão irracionais quanto a
bola e ignorar o que realmente tem significado neste mundo. Temos um
povo na África, e também em Angola, que necessita de justiça
social, de cidadãos preocupados com a coletividade, que vivenciem o
lema nacional Virtus
Unita Fortior,
a unidade dá força, que queiram construir uma nação acima dos
interesses pessoais. Irmão, disse António, enquanto vejo meus
colegas de trabalho frequentando bares e casas noturnas caras,
durante minhas folgas em Madri, tenho visitado o Museu do Prado, a
Biblioteca Nacional, o Teatro Español, a livraria Casa del Libro, na
Gran Vía. Em Luanda, me nasceu um embrião; em Lisboa, gestei essa
iluminação; em Madri, a eclosão. Adoro o futebol, continuou
António, mas descobri que sou um ser humano muito maior do que o
jogador que me tornei.
Após
três dias, o Aeroporto Internacional 4 de Fevereiro, em Luanda,
estava repleto de admiradores e repórteres de televisão, de rádio
e de portais da internet para a despedida de António Poeta. Em meio
ao empurra-empurra dos presentes, o ídolo fez questão de passar por
entre a multidão. Autógrafos eram distribuídos em camisetas de
clubes, em fotografias, em revistas, na pele dos adeptos. Os flashes
pipocavam aos milhares em um clarão contínuo. Próximo à entrada
para o embarque, o jogador parou para dar as últimas entrevistas em
solo angolano.
Deixe
uma mensagem para o vosso povo, pediu um repórter da rede de
televisão.
África,
valorize os seus professores, respondeu prontamente António Poeta. É
o saber e não a bola que tornará o
nosso
continente melhor. Hoje, vejo milhares que vem até aqui para me dar
o seu carinho, mas peço que façam mais pelos mestres de vós e de
vossos filhos. Um mundo em que um jogador de futebol é mais
importante do que um professor é um mundo com uma grande inversão
de valores.
Esta
foi a última mensagem de António Poeta em solo angolano, disse o
repórter voltado para a câmera. O maior ídolo do desporto nacional
está retornando para a Espanha, onde retomará os treinamentos para
a segunda metade da liga profissional de futebol. Após o
vice-campeonato na época anterior, e o terceiro lugar na artilharia
do campeonato; neste ano, o atacante António Poeta pode levantar o
troféu de maior prestígio dos gramados espanhóis, além de se
tornar o jogador com o maior número de golos marcados. Falemos de
futebol, porque futebol é o mais importante.
Em
Madri, durante a primeira partida oficial do segundo turno da liga,
António Poeta sofreu a primeira lesão grave de sua carreira. O
traumatismo no ligamento do joelho esquerdo impossibilitaria o seu
retorno ao esporte por, no mínimo, três meses. Em seu confortável
apartamento no bairro de Recoletos, o ídolo angolano contava com o
apoio de sua irmã Fátima. Foi ela quem avisou o irmão a respeito
dos telefonemas de amigos, colegas de profissão e ex-treinadores
lamentando o acontecido e desejando os votos de uma rápida
recuperação. Entre essas ligações, o jogador teve um sobressalto
ao ouvir o nome de Maria Pedra, a poetisa portuguesa por quem nutria
uma paixão não correspondida. Pedindo maiores detalhes sobre o que
tinha sido falado, procurando saber qual era a modulação da voz, se
era tranquila, normal, triste, pesarosa, o homem queria extrair
percepções de dentro da irmã, que ela não fora capaz de captar.
As desculpas por ter atendido tantas ligações, e por isso não
poder se recordar de todas, foram aceitas, mas ele ainda não tinha
apaziguado o espírito tomado pela curiosidade.
Em
Lisboa, Maria Pedra atendeu o telefonema de António Poeta. Ela era
uma intelectual, bissexual, bipolar, a paixão dele. Conheceram-se
nos tempos em que ele jogava por um clube da capital portuguesa.
Tiveram um relacionamento fugaz com algumas idas e vindas ao longo
dos anos, mas, por vontade dela, jamais oficializaram uma relação.
António Poeta não a achava a mulher mais linda, nem a mais
atraente, que já conhecera. Em sua carreira de futebolista, havia
namorado modelos internacionais e atrizes de cinema e de
televisão;
porém, nenhuma outra exercia sobre ele um poder desafiador como
Maria Pedra. O olhar dela era ambíguo, e de suas pupilas surgia um
enigma pedindo para ser decifrado. Ao decodificador, a devoração.
Maria
Pedra estaria na capital espanhola na semana seguinte para o
lançamento de uma antologia poética com importantes autores
ibéricos da contemporaneidade. Ele tinha todos os livros lançados
por ela. Aqueles versos lhe remetiam ao olhar inatingível da
versejadora. Um desafio, o tempo todo um desafio, como passar noventa
minutos se defendendo em um campo de futebol, como depender
unicamente do goleiro para evitar a derrota, assim eram os versos de
Maria Pedra: duros, ásperos, como uma pedrada na alma do leitor. A
mulher e a poetisa eram uma pessoa só, não havia uma artista de
meio período. A dureza dos versos era a dureza de sua vida. Não
havia ilusões na sua forma de ver o mundo. Tudo era artificialidade,
exceto a crueza do ser. Em seus desejos, a mulher revelava o que era;
em sua censura, a civilização matava a espontaneidade. Perguntada,
uma vez, sobre o que queria da vida, Maria Pedra disse que queria
morrer como Virginia Woolf: sob as águas de um rio, com pedras nos
bolsos. Mas, no Tejo.
Após
o lançamento do livro, António e Maria foram jantar no hotel em que
ela estava hospedada. A distância havia transformado-os de alguma
forma. Os olhos de António estavam abertos para uma maior
compreensão de mundo, ainda que apenas visse sentido em um mundo
compartilhado com ela. O julgamento de Maria estava mais brando, e
agora enxergava nele um homem capaz de grandes realizações. Por
mais de uma hora falaram sobre as estreias do cinema europeu, a nova
geração de escritores lusos e africanos, a miséria que ainda
dominava boa parte da África e da América do Sul, a crise econômica
na Europa. Mostraram-se assombrados com o fato do Brasil ser uma das
maiores economias do mundo na atualidade, e mesmo assim apresentar
um dos piores sistemas educacionais do planeta. Houve uma atração
muito intensa entre eles. Nunca
antes haviam percebido como um entendia o outro; como nunca outra
pessoa seria capaz de entender quem eram.
Quando
amanheceram, perceberam que davam um passo juntos para um corredor
estreito. Todo grande amor traz consigo uma grande dor ao terminar.
Ambos expunham a própria carne a uma navalha afiada.
Chamam-te
ainda de Pés de Poeta em Lisboa, disse Maria com o rosto pálido
recostado no peito negro de António.
Em
Madri também, disse ele. Lá sou Pies
de Poeta.
Os narradores esportivos dizem que driblo os adversários com uma
métrica dos versejadores. Um jogador fica para trás em dois metros,
dois em quatro. Realizaram a contagem com um daqueles recursos
eletrônicos da televisão, e concluíram que a minha técnica é
precisa. Um por dois e dois por quatro.
Permaneceram
abraçados por toda a manhã. Fizeram amor mais uma vez. Durante o
almoço, António e Maria conversaram sobre a possibilidade de se
verem com mais frequência. Ela poderia ficar na casa dele em Madri;
ele, na dela em Lisboa, quando não houvesse compromissos com o clube
de futebol em que atuava. Falaram também sobre Luanda, pois ela
jamais visitara a África.
Como
está o país após a guerra civil, ela perguntou.
Penso
que em Angola, disse António, como em todos os países pobres do
mundo, não basta que um indivíduo consiga vencer na vida. É no
todo que vamos crescer como nação. Virtus
Unita Fortior.
Veja o meu país, por exemplo: de que adianta depositarem em mim a
esperança para a classificação para o Mundial, ele
perguntou.
Somos um todo e se o conjunto não for forte, todos sucumbem
igualmente. Assim é o país na educação, nas políticas interna e
externa, se mantivermos uma base fraca com governantes que não
desenvolvem a nação sobre os pilares da escolaridade e da cultura
com respeito às tradições, continuaremos a presenciar gerações e
gerações que crescem muito aquém das suas potencialidades. Quero
fazer algo por meu país. Penso em criar um instituto que apoie o
sonho das crianças e as incentive a desenvolver os seus talentos.
Sabes
que tenho uma visão pessimista do mundo, disse Maria. Contudo, quero
estar errada e acreditar que a humanidade alcançará os princípios
de igualdade, liberdade e fraternidade. Estou a perceber o quanto
estás a te envolver em questões da política de teu país, o que é
bom, mas que também é perigoso. Em Portugal, por exemplo, as
pessoas parecem amar-te cada vez mais, mas começam a odiar-me como
por muito tempo odiaram José Saramago. Muitas vezes, as pessoas não
querem ouvir o que mais precisam saber.
A
despedida foi difícil para os dois amantes. Em seu retorno para
Lisboa, Maria Pedra escreveu, a bordo do avião, versos de uma crueza
dolorida, extraídos de uma singular ruptura em sua alma, o reflexo
dos muitos fragmentos do seu ser. Em seus devaneios, António Poeta
ainda tentava uma solução para o enigma que era a sua amada.
Complexa como a vida, à mulher não cabe uma única resposta. Para
amar uma mulher é necessário compreender que na imprevisibilidade
de suas ações reside a mesma beleza que há no mundo.
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