"Sinisdestra" é um livro de contos interligados por um tema comum a todos.
Você encontra as partes anteriores nas postagens antecedentes.
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14.
Embora as palavras lhe
chegassem instantaneamente pelo telefone, o tempo estava cindido
entre o instante presente e as inúmeras recordações do passado e
os arrependimentos que agora o acometiam, os mesmos dos quais tentava
fugir usando a desculpa de sempre poder realizar amanhã. Entendia
estar sempre ocupado, mesmo para o futuro pedia que retardasse a sua
chegada, pois tinha no hoje sempre o compromisso mais importante. O
amanhã chegara antes do que era esperado, subvertendo toda uma ordem
que não existia, uma ilusão sustentada em alguns elementos da
rotina para entender o caos que é viver. Diante dele o futuro do
qual se escondia se apresentava com a roupa do presente, que logo
estaria velha e desbotaria como tudo que é perecível.
A diretora do asilo
confirmava pelo telefone que a mãe de Daniel Mendonça havia morrido
às seis horas da manhã, mas não tinham conseguido localizá-lo
antes para dar a notícia. Um derrame acabara com as suas longas
queixas de dores na coluna vertebral que já entravam em duas
décadas. Ela não sofreu, explicava a diretora, teve uma estadia em
que recebeu todos os cuidados e a merecida atenção ao longo de
trinta anos. Falecida aos noventa e sete anos, Zilá Mendonça era a
mais antiga e longeva moradora da casa geriátrica, era quase parte
da decoração do ambiente, ela e seu rádio de pilhas em que ouvia
antigas canções de sua juventude, deixando-se embalar pela cadeira
de balanço e por momentos que permaneciam vivos em recordações
ainda existentes apenas em seus sonhos acordados. Viúva, mãe de
três filhos, avó de sete netos, Zilá tinha perdido parte da
família na guerra que extinguira a liberdade do país, então lhe
restava apenas Daniel como filho vivo e quatro dos sete netos. A
diretora perguntava a respeito dos procedimentos para o funeral, mas
o filho não conseguia raciocinar direito para tomar as decisões que
a ocasião exigia dele.
Por favor, tome as atitudes
que você achar necessárias, Daniel pedia, buscando algum tipo de
salvação para a sua inabilidade para tratar dessa questão. Confio
na senhora, então, por favor, tome conta de minha mãe e do funeral,
que eu arcarei com todas as despesas. Amanhã pela manhã estarei aí.
Depois de encerrar a ligação
telefônica, Daniel procurava o botão desligar no controle remoto da
televisão. Não tinha mais motivo para prosseguir assistindo ao
filme de comédia que ocupava o seu início de noite naquele momento.
Enquanto se lembrava da última vez em que estivera com a mãe, sem
ter certeza se fazia três ou quatro anos, quando ela ainda habitava
o quarto maior do asilo, isso antes de ser transferida para um
aposento mais acanhado, uma imposição da razão econômica, tentava
se justificar; Daniel jamais se sentira tão só no mundo. Sua mãe,
que nada sabia da sua vida, havia partido, e ele jamais tinha
compartilhado o seu segredo com ela. Nunca tivera coragem de contar
os rumos que tinha dado à própria vida, embora tivesse imaginado
milhares de vezes a reação dela. Se escondera da mãe em sua
própria liberdade, enquanto ela passou a viver a sua senilidade em
uma casa de repouso, ainda que esse descanso não tenha sido uma
opção dela. Mesmo distantes, ele sabia que ela estava lá. Havia
uma segurança ilusória de que alguém ainda lhe guardava a memória
e o afeto compartilhados apenas por eles, um tipo de corrente
desgastada com seus elos envelhecidos, mas que ainda guardavam um
segredo porque estavam unidos. Agora era um elo só, perdera a
condição de ser corrente. Deitado sobre o sofá da sala de estar,
os olhos de Daniel projetavam no teto alvo muitas das lembranças de
sua vida, as mesmas que agora retornavam em forma de perguntas e
arrependimentos. Por que não havia passado mais tempo com a sua mãe
nesses últimos trinta anos? Por que sempre priorizara os
compromissos mais banais em detrimento da companhia dela? Por que
fazia a distância de duzentos quilômetros que os separava parecer
uma viagem transoceânica? Por que nunca contara a verdade sobre o
seu divórcio? Por que não explicou os motivos de fazer ruir um
casamento de vinte e cinco anos? Por que jamais contara sobre a
paixão avassaladora que tivera por um homem quinze anos mais jovem
do que ele? Por que nunca tivera coragem de contar à sua idosa mãe
a respeito desse relacionamento? Por que nunca se apresentara como o
estranho que ela desconhecia, o filho que ela gerara, mas que se
tornara um outro ser, alguém envolto em seus segredos?
Sabia que precisava
telefonar, mas isso seria voltar a ter contato com o mundo do qual
havia se isolado, do qual tinha sido rejeitado. Talvez apenas a mãe
ainda o amasse com a mesma complacência de um poeta que admira o seu
mais belo poema, ainda impressionado consigo mesmo em sua obra, como
a contemplar algo que lhe valera a existência. O amor de sua mãe
deveria ser um desses que muito dão sem pedir muito em troca, apenas
aguardando a sua vez em meio às atribulações que sempre a
empurravam para o final de uma longa fila. Antes de fazer a primeira
ligação, Daniel já havia bebido meia garrafa de uísque. Encontrar
o passado era a pior forma de encarar o presente, era voltar os olhos
para as suas memórias e desejar intensamente ter vivido outra vida
desde o início. Bebeu mais um copo da bebida e discou o número de
telefone da casa da ex-mulher.
Eu disse que nunca mais
queria falar com você, disse Brígida ao atender o telefonema.
Tentando ganhar tempo para
ser escutado, Daniel explicou de maneira atropelada que a mãe dele,
a ex-sogra dela, havia morrido, por isso ele precisava dos números
de telefone dos filhos para avisá-los do funeral e do enterro.
Contrariada, temendo estar traindo a confiança dos filhos, ela cedeu
e lhe disse como entrar em contato, embora tenha sido dado o alerta
de que eles não queriam nunca mais falar com o pai. Mais um copo de
uísque desceu inteiro pela garganta de Daniel antes da ligação
para Abel, o primogênito de seu antigo matrimônio.
Eu disse que nunca mais
queria falar com você, disse Abel ao ouvir a voz do pai.
Como explicar que o passado
é o passado se ele mesmo era tão assombrado pelo que tinha vivido,
mas tentou explicar que o ocorrido não havia sido planejado
deliberadamente, que as paixões acontecem, que os seres humanos são
tão falhos, tão vulneráveis que são incapazes de se guiar apenas
pela razão. Se pudesse, jamais teria se apaixonado por outro homem e
terminado o casamento de forma tão desastrosa. Agora que a mãe de
um e a avó de outro estava morta, a vida mostrava que não se pode
abdicar do passado sem consequências para o futuro. Tudo o que não
é dito é vivido de outra forma, porque o que a voz não fala, o
corpo e a mente sofrem. Abel confirmou presença no funeral, mas não
queria aproximação com o pai, a quem julgava um pervertido, um
traidor. Sentindo uma tontura, uma estranha agitação nos móveis
que se mexiam de um lado para o outro, Daniel engoliu mais uma dose
de uísque e telefonou para Ismael, o filho mais novo.
Eu disse que nunca mais
queria falar com você, disse Ismael ao perceber a voz do pai na
ligação.
Como explicar que ele jamais
quisera ficar longe dos filhos, mas que a mãe deles se sentiu tão
humilhada por ser abandonada, por ser trocada por um homem, por
descobrir que o marido depois de um quarto de século de casamento
era bissexual, que essa mulher usara os próprios filhos para feri-lo
de maneira distinta da maneira como ele a fez sofrer. Ao pôr fim ao
matrimônio, lhe foi imposto o fim da paternidade também. Nunca
conseguiu reatar os laços que rompera na cama de outro homem. Ismael
aceitou participar do funeral da avó, mas foi enfático ao não
aceitar esse momento como uma reconciliação com o pai.
Daniel abriu mais uma
garrafa de uísque, encheu o copo e bebeu por inteiro. Em sua agenda
telefônica encontrou o número do ministro João Remocaim, para quem
tinha trabalhado como assessor de imprensa. Depois de tocar três
vezes, quem atendeu foi a secretária eletrônica. Enquanto a
mensagem começava a ser gravada, apenas a respiração pesada
encontrava registro na máquina.
Senhor ministro, é o Daniel
Mendonça, seu ex-assessor, quem está falando. Desculpe-me se pareço
meio bêbado, mas a minha mãezinha de noventa e sete anos morreu
sozinha no asilo nesta manhã, e eu queria convidar o senhor para o
funeral e o enterro, porque eu queria ter ficado mais tempo com ela,
mas estava trabalhando tanto para as suas campanhas eleitorais e para
o seu gabinete de governo, que deixei de ver a minha mãe para estar
com o senhor, porque o trabalho é muito importante, mas a minha mãe
era importante e o senhor é tão importante e não sei se poderá ir
ao funeral e ao enterro, mas para mim seria importante que fosse
porque estou tão sozinho nesse mundo e meus filhos me odeiam e
espero que o senhor não me odeie também, porque não sou esse velho
bêbado que está falando, não sou, o senhor me conhece, trabalhei
para o senhor por mais de dez anos, transformei a minha vida nesse
buraco negro sem fundo, essa draga que levou até a minha mãe e
agora estou tão sozinho, ninguém quer saber de mim, mas eu não
quis abandonar a minha mãe no asilo, eu iria visitá-la em breve, eu
estive lá há três ou quatro anos, mas não podia ir sempre, não
queria que ela morresse sozinha, juro que não, mas vou desligar,
tenho certeza que o senhor não quer mais ouvir sobre isso, mas
considere a ideia de estar lá amanhã, pois seria muito importante
para mim e para a minha mãe, que era sua eleitora, então adeus,
senhor ministro.
Ao pousar o telefone sobre a
mesa de cabeceira ao lado do sofá, Daniel esticou as pernas e se
alongou sobre o assento. Estava bêbado, teria uma ressaca terrível
no dia do enterro, mas não conseguia parar de beber. Ainda faltava
ligar para Bruno, seu ex-companheiro.
Eu disse que nunca mais
queria falar com você, falou Daniel, mas hoje percebi que sou capaz
de perdoar a sua traição com aquele atorzinho de quinta categoria,
além disso, minha mãe morreu e eu sempre quis ter a coragem de te
apresentar para ela enquanto vivíamos juntos.
Bruno, que jamais conhecera
a mãe de Daniel, lhe dissera que o passado é para ser lembrado e
não para ser refeito, pois o tempo não volta para trás, que as
escolhas de antes podem não ser as melhores, mas eram as possíveis,
por isso a sabedoria não está em acertar sempre, mas em reconhecer
os próprios erros e não cometê-los novamente, então é necessário
estar preparado para aceitar os novos que virão. Pela primeira vez
em muito tempo, Daniel chorou volumosamente. A solidão lhe alarmava
quanto a seu próprio fim, nesse momento, só queria abraçar a sua
mãe.
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