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A zona de amizade

       Havia um impasse, uma insegurança típica daqueles que foram além dos seus limites e não sabem como voltar. Era uma daquelas situações em que muito havia sido dito, em que as palavras excediam os olhares e davam uma complementaridade a cada gesto de modo que não se podia esquecer. Era uma ilusão tentar negar o que havia acontecido. Os adultos não podem simplesmente se esconder em uma toca e esperar que o mundo pare de girar. Por mais que haja situações para as quais jamais se tenha sido preparado, a vida exige um protagonismo que talvez não emergisse fora de instantes limítrofes, mas assim são as surpresas, como se diferenciam as boas e as más recordações. Eles se olhavam apreensivos depois de uma conversa, que se transformou em discussão, depois em conversa novamente, e um pouco de negação, autoacusação, desculpas, arrependimento despontaram ao longo de pouco mais de trinta minutos em que a relação era discutida.

        Que merda, eu te amo, disse Sidnei, reconhecendo instantaneamente o grande erro que poderia acabar com a sua trajetória.

        Eu também te amo, respondeu Isolda, aliviada por compreender que um limite tinha sido derrubado.

        Para a mulher, a declaração foi como pular de uma ponte: havia ultrapassado a barreira gelada, mas estava a muitos metros abaixo da sua linha de segurança. Agir agora era tentar respirar sob a pressão que a esmagava. Para ele, era como lutar contra si mesmo, negar os seus próprios compromissos, dizer em frente ao espelho que não passava de um fraco sem controle, que por mais que tivesse sido bom, cometera o maior equívoco que poderia acontecer. Estava despido de sua pesada couraça, era de novo um rapazote movido por suas emoções.

        Sidnei e Isolda se juntaram em um beijo com gosto de afogamento e as lágrimas o tornavam salgado.

        Embaralhadas, as memórias se misturam, cada testemunha ao presenciar o mesmo acontecimento há de contar apenas o que a sua limitada percepção pôde captar, por isso o relato é o seguinte: recentemente mudada para a pequena cidade, Isolda, em sua introspecção que de nada ajudava a superar o sentimento de solidão, passava a maior parte do tempo – em que não estava trabalhando como enfermeira no posto de saúde – em frente ao computador mendigando um pouco de bate-papo virtual aqui e ali com conhecidos de sua terra natal. Tomada pelo tédio, ela chorava às noites, antes de dormir, e se arrependia do dia em que assumiu a vaga de trabalho conquistada mediante concurso público. Isolda estava muito longe de sua antiga casa e não sentia que tivesse um lar agora. Depois de dois meses em que não conseguia firmar nenhuma amizade sólida, o desespero era crescente. As olheiras e os bocejos diurnos denunciavam as horas insones à procura de um pouco de atenção em uma rede sem limites atrás de uma tela que a ligava a uma vida vivida no passado.

        Surpreendida pelo convite do médico mais influente do posto de saúde, Isolda recebeu, primeiramente, com um quê de alegria e, depois, com muita preocupação a solicitação para a presença na festa de aniversário dele. Cônjuges e amigos permitidos. Quanto mais gente melhor. Ouvir esses adendos ao convite inicial despertou nela a angústia da solidão. Se todos levassem algum agregado, o seu isolamento social estaria destacado tal qual a cruz vermelha no uniforme branco dos profissionais de saúde. Faltar à festa despertaria um falatório negativo, cuja única vítima seria ela mesma. Todos haviam confirmado presença, por isso, mesmo sob pressão, também disse que estaria na festa que tinha feições de comício para lançar a candidatura do médico à vaga de vereador do município.

        De seu computador, Isolda tentou o contato com o mundo. Ainda que a sua cidade natal distasse mais de 2 mil quilômetros, publicou na rede social um pedido para que seus antigos amigos a viessem visitar com as vantagens de hospedagem e turismo gratuito. Não teve nenhum comentário. Ninguém se dispôs a sacrificar o seu tempo, de abrir mão um pouco da própria vida para vir socorrê-la no momento em que mais era necessário um auxílio. Enquanto rumava a flecha do mouse para a opção de exclusão de sua conta naquela rede, bateu os olhos sobre um anúncio inesperado. Ao lado de uma diminuta fotografia de um casal sorridente, um texto em poucos caracteres dizia: “tenha o amigo que você quizer falando conosco”. O erro de grafia no verbo querer quase a demoveu de clicar sobre a imagem, mas as suas esperanças estavam no final. Da página em que estava, Isolda foi direcionada para um sítio de aluguel de companheirismo. Muitas eram as opções à sua escolha naquela zona de amizade, e isso pôs um grande sorriso em seu rosto.

        De dentro do refrigerador, Isolda tirou uma garrafa de espumante. Novamente sentada em frente ao computador, ela encheu uma taça e vasculhou os serviços oferecidos pela agência que conspurcava a afeição. Embora os planos de amizade individual fossem do seu agrado, os pacotes coletivos davam maior autenticidade às relações compradas. Isolda selecionou os amigos dispostos na vitrine virtual por critérios como faixa etária, hábitos de vida, preferências culturais e tipo físico. A opção foi por um amigo bonito de pele morena, cabelo raspado, forte, fluente em inglês e básico em francês, com alguma vivência no exterior, com 37 anos, o que o tornava apenas um ano mais velho do que ela. Como havia escolhido o pacote coletivo, Isolda também contratou uma amiga gordinha, loira de cabelos curtos, atriz de peças infantis, que sabia de cor todas as canções da Enya, e era menos bonita do que ela mesma, afinal quem pagava não queria ter que competir. Feita a seleção dos amigos, Isolda passou para a segunda etapa do processo: a reserva das datas e o nível de amizade. Para parecerem amigos antigos, a agência pedia que o contratante escrevesse uma biografia em que fossem contatos detalhes que deveriam ser mencionados em conversações para demonstrar intimidade. Quantos mais caracteres utilizados, sempre em múltiplos de cento e quarenta, mais custoso seria o valor cobrado pelos amigos. Contudo, depois de muito estudo, ninguém poderia acusar de não se tratar de uma amizade verdadeira. Todos eram amigos muito profissionais nesse ramo. Isolda jamais se sentira mais feliz por usar o seu cartão de crédito em compras pela internet.

        No dia em que a festa estava marcada, Isolda recebeu em sua casa os amigos Sidnei e Marisa. Muito simpáticos, eles apresentaram o recibo dado pelo taxista, cujo valor seria acrescido ao preço final do serviço. Feliz por não estar sozinha, a anfitriã serviu chá com biscoitos para os que haviam chegado. Conversaram bastante sobre a vida de Isolda, combinaram os detalhes da amizade, estipularam os limites de intimidade que tinham, combinaram senhas para momentos de desconcerto, e fizeram algumas fotografias juntos para que fossem postadas na rede social. À noite, durante a comemoração, Isolda apresentou Sidnei como um amigo colorido que ela tinha conhecido em uma viagem ao Reino Unido; Marisa foi sua professora de teatro, a primeira pessoa a reconhecer o seu talento para as artes cênicas. Isolda ouviu tantos elogios dos amigos que chegou a acreditar no que escutava. Era uma sensação maravilhosa ter companhias como essas. Tão próximos, sabiam tanto sobre ela, detalhes que nem mesmo lembrava de ter vivido. Ao deixar a festa, ignorando o comício político, Isolda sentia que jamais havia se divertido tanto em uma celebração de aniversário. Uma estrela com dois planetas a girar ao seu redor.

        Depois de insistir que fossem juntos com ela para casa, Sidnei e Marisa acompanharam Isolda. Mesmo que tivesse que pagar uma diária a mais, a contratante fez questão de que seus amigos dormissem em sua casa. Dormiram pouco, porque conversaram muitas horas na madrugada insone. O computador permaneceu desligado por todo esse tempo, enquanto a conversa virtual dava lugar à proximidade das eras remotas em que a única maneira de falar com outra pessoa era estando diante dela. Pela manhã, os amigos apresentaram a conta pelos serviços extras prestados. Retirando uma máquina portátil cobradora de cartão de crédito de dentro de sua bagagem, Sidnei fez a transação com Isolda. Após a despedida, os dois visitantes voltaram para as suas cidades, e a enfermeira seguiu para o seu trabalho.

        Durante toda a semana, Isolda recordava a incrível sensação de ter amigos. Uma amargura lhe abatia ao perceber-se só novamente. O isolamento em uma cidade pequena em que ela não se sentia acolhida tornaram a ocupar os seus pensamentos. Depois de comer duas barras de chocolate em sequência, ela voltou a recorrer à zona de amizade. Dessa vez, contratou apenas Sidnei para o final de semana. O texto biográfico escrito dessa vez era mais revelador, contava a sua angústia atual, aprofundava a sensação de arrependimento por ter trocado a sua cidade natal por um salário alto pago no emprego que ocupava. Arriscou contar um segredo que ninguém em sua família tinha conhecimento.

        O céu claro e o clima agradável fizeram do sábado e do domingo os dias mais prazerosos dos últimos tempos para Isolda. Juntamente com Sidnei, foi ao parque para uma caminhada e um piquenique; viram a apresentação de uma peça de teatro de bonecos na praça central da cidade; banharam-se na cachoeira; deitaram na grama e olharam as nuvens; visitaram o cemitério e leram os nomes nas lápides. Isolda fez tudo o que gostaria de fazer na cidade, mas nunca tivera companhia para realizar. Sentia-se elevada por ter quem a acompanhasse.

        A semana era consumida na indiferença dos antigos amigos, cada vez mais virtuais apenas, e dos locais que a ignoravam. Nos três meses seguintes, Isolda reformulou o orçamento doméstico, eliminou despesas que poderiam ser cortadas, e contratou a amizade de Sidnei nos finais de semana. Fazia sentido sentir-se bem. Estar com ele a fazia suportar a rotina semanal, pois haveria uma compensação para aplacar o vazio que se tornara a sua vida. Quando ela precisou vender o automóvel para continuar arcando com os gastos, por nenhum momento deixou de acreditar que estava fazendo a coisa certa, que estava tomando a única atitude capaz de lhe conservar a sanidade.

        Certa vez, Sidnei cometeu uma inconfidência e se queixou a Isolda de que, muitas vezes, era contratado para ser amigo de pessoas muito chatas, ou negativistas que afastam as pessoas, ou aquelas que não aceitam ser contrariadas por se acharem sempre certas, o tipo que se diz convicto de ser um exemplo para a humanidade. Essas pessoas acabavam cansando Sidnei de exercer o seu trabalho com todo o profissionalismo exigido. Estar com Isolda era uma benção, porque todo o afeto que ele dava a ela tinha uma contrapartida sincera. Curiosa, ela quis saber como ele tinha ingressado nessa atividade. Apesar de não costumar revelar detalhes de sua intimidade, Sidnei também se sentia vulnerável às vezes. Era assim que ele se sentia nessa ocasião. Doar-se aos outros não era uma tarefa fácil, estar sempre amigável, ser solícito, incentivar, confortar nos momentos de maior dificuldade. Ser amigo de graça é assumir muitas tarefas e compromissos que afetam toda a sua vida sem garantias de que haja alguma compensação, pois das amizades podem surgir os ódios mortais – é o amor um dia sentido que alimenta a aversão ao outro.

        Sidnei disse que queria ser psicólogo, mas depois de três tentativas, nunca conseguiu passar nos exames para ingressar na faculdade. Desistiu de seu sonho e foi morar na Europa, onde trabalhou como carregador de bagagens em hotéis e auxiliar de cozinha em restaurantes. De volta à sua cidade, depois de conseguir juntar as suas reservas financeiras, conheceu a proprietária da agência de aluguel de amizade. Trabalha com ela desde então. Tornara-se o nome mais requisitado do negócio. Tanto Isolda quanto Sidnei sentiam que estavam avançando os limites da amizade contratada. Ela se perguntava se o queria apenas como amigo, mas se sentia travada para dar um passo adiante na relação, porque temia ser mal interpretada e pôr tudo a perder. Ele se sentia incomodado com o que começava a sentir, pois já estava ficando difícil negar para si mesmo o quanto o seu coração pulava ao estar com ela. O conflito era ferrenho entre a responsabilidade e o respeito ao código de ética profissional postos em oposição ao sentimento crescente por aquela mulher carente e solitária. Sidnei começava a se reconhecer em Isolda, pois com tantos amigos que lhe pagavam para ter a sua amizade, ele mesmo havia se afastado de todos que lhe devotavam afeição, e agora sentia um espaço oco ocupando o lugar reservado para as companhias em sua vida.

        Encontrando-se todos os finais de semana, havia duas relações paralelas entre Isolda e Sidnei. Uma era a para a qual ele fora contratado, a outra existia em uma dimensão platônica escondida por medos e o receio de ambas as partes de acabar com a primeira. Nenhum deles sabia por quanto tempo as duas relações conseguiriam sobreviver a esse jogo de fingimento de cegar-se para a presença da outra. Sentiram que havia a necessidade de conversar. É o que sempre faziam, mas dessa vez era diferente. Sidnei precisava compreender com a habilidade de um psicólogo que nunca fora; Isolda teria que tratar as feridas abertas com a sua qualidade de enfermeira. Ambos sabiam o que queriam dizer, sabiam o que queriam escutar, usavam as palavras como para ganharem tempo, e preâmbulos recheados com alguma negação ao significado que tomaram os sentimentos, autoacusação de não conseguir fazer as distinções devidas, desculpas por não conseguir evitar, arrependimento por temer estragar o restante da vida. Estavam mais próximos do que jamais estiveram.

        Que merda, eu te amo, disse Sidnei.

        Eu também te amo, respondeu Isolda.

        Havia um buraco e ambos estavam dentro. De lá, não queriam mais sair.


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