Os olhos
permaneciam fechados,
embora o alarme do
telefone celular insistentemente
tocasse um bip
repetido, que na
noite anterior fora pensado
para acordá-la, porém, nesse
instante tinha apenas o tom de uma incômoda perturbação.
Com um movimento
sonolento, ela tocou
a tela do aparelho
e reprogramou o
despertador para quinze
minutos adiante. Apesar de ainda se
sentir cansada, não conseguia mais dormir. Não conseguia evitar de pensar nas
tarefas que tinha de realizar neste sábado: embarcar no ônibus, ir à
biblioteca, fazer o desjejum, voltar à biblioteca, almoçar, tomar o ônibus de
volta, comprar comida, retomar a escrita do trabalho de conclusão de curso da
faculdade de Sociologia; mas, sem que percebesse como havia começado, de
repente estava a pensar no ex-namorado. Revivia momentos saudosos de grande
prazer e tentava aceitar o rompimento que lhe fora imposto abruptamente.
Irritada consigo mesma por perder o seu tempo lembrando de quem a havia
desprezado, Azânia jogou as cobertas para o chão com um movimento intenso que
em nada combinava com a letargia que a impedia de se levantar. A gata que
dormia sobre uma caminha ao lado da cama dela saiu em uma disparada assustada.
O bip repetido do telefone celular voltou a cortar o silêncio do quarto. Dessa
vez, sem tentar prolongar um sono que já não existia mais, ela sentou sobre a
cama, esticou os braços e a coluna espreguiçando-se com vontade. Acostumada a
dormir vestindo apenas uma calcinha e uma camiseta, Azânia sentiu uma umidade
na vagina. Depois de apanhar os óculos que estavam sobre a mesa de cabeceira ao
lado da cama, ela percebeu uma pequena mancha de sangue em sua calcinha branca.
O lençol que cobria a cama também tinha uma rodela avermelhada. De pé, em
frente ao espelho, a expressão facial era facilmente interpretada como uma
desaprovação ao cabelo cacheado pintado de loiro desgrenhado, as acnes que
eclodiam em suas bochechas e à silhueta alargada com os cinco quilos a mais que
surgiram juntamente com as olheiras. À medida que o prazo para a entrega do
trabalho se aproximava do limite, Azânia descuidara da alimentação,
entregando-se tão somente à atividade intelectual e abandonando até mesmo as
caminhadas que costumava fazer nos finais de semana. Em um sábado como este,
estivesse o dia chuvoso ou escaldante, ela vestiria uma roupa esportiva,
trocaria os óculos de grau por um de sol, acomodaria um boné sobre a cabeleira,
calçaria um tênis com amortecedores e faria o trajeto ovalar do parque
municipal. Contudo, a sua preocupação agora era outra. Com uma crítica
excessiva, achou-se feia ao ver a imagem refletida. Em um instante de
autopiedade, queixou-se que nunca mais conseguiria outro namorado. Depois
pensou que era uma bobagem afirmar tal coisa, que deveria se ater apenas ao que
era importante no momento.
Marcada pelo sangue da menstruação,
Azânia foi para debaixo do chuveiro. Ainda cansada da noite mal dormida, deixou
que a água gelada escorresse sobre a cabeça e seguisse pelas costas. Todos os
músculos se contraíram devido ao choque térmico. Desde que a resistência do
chuveiro elétrico tinha queimado, ela precisava recorrer a alguns estratagemas
para conseguir se banhar: primeiramente levava um jato frio sobre todo o corpo,
uma vez que já estava molhada, saía debaixo da ducha e lavava o corpo parte por
parte, ao melhor estilo esquartejador. Cabelo, rosto, pescoço, axilas, pés,
braços, seios, tronco, nádegas, ventre, costas, genitália. Com uma toalha
enrolada na cabeça, usava outra para se secar o mais rápido possível para
escapar do frio que a fazia tremer. Procurou por um absorvente com abas e não
encontrou nenhum. Estava menstruada e não tinha o que contivesse o sangue que a
qualquer momento inoportuno poderia escorrer. A hora exigia alguma solução,
então ela cortou um longo pedaço de papel higiênico, fez algumas dobras, e
colocou dentro da calcinha. Por mais desconfortável que estivesse, era uma
medida temporária para evitar um incidente indesejado. Vestindo uma calça jeans
tamanho 42 e um blusão de lã vermelho, Azânia foi até a cozinha preparar um
café. O pó estava no fim. Ela colocou tudo o que tinha na cafeteira e completou
com água no compartimento apropriado. Para quem gostava de café forte, duas
colheres cheias de sopa, aquela dose que mal completava uma parecia
insuficiente. Acariciou a pelagem macia e serviu uma porção de ração para
Lilith, a gata siamesa de estimação com quem conversava dentro de casa. Foi
para a gata que ela reclamou que, de fato, a bebida estava com um gosto
horrível. Enfraquecido, o café não era mais do que uma água escura. O relógio
da cozinha indicava que já eram quase oito horas da manhã. Azânia precisava se
apressar, porque o ônibus passaria em pouco mais de trinta minutos. De volta ao
banheiro, ela jogou um jato quente de ar do secador de cabelos sobre a cabeça,
enquanto penteava os fios cacheados. Embora ainda estivessem úmidos, não teria
tempo para um cuidado maior. Começou a colocar todo o material necessário para
usar na biblioteca em uma mochila, mas não encontrava o papel em que havia
anotado as referências dos livros que precisaria consultar. Um, dois, três,
quatro minutos se passaram e ela temia perder o ônibus procurando por uma folha
que não estava onde ela pensava ter deixado. Acabou por encontrá-la dentro de
outro caderno. Calçou o seu tênis preto e branco de lona e borracha, pegou o
seu guarda-chuva, se despediu de Lilith e saiu.
Estava apreensiva na fila da
farmácia 24 horas para pagar o absorvente íntimo que estava levando. Na sua
frente, uma senhora já tinha errado a senha do cartão de crédito duas vezes. De
olho no relógio, viu que faltavam apenas quatro minutos para a chegada do
ônibus. Exatamente o mesmo tempo que ela passara procurando as suas anotações.
Nervosa, seu coração já estava acelerado. Finalmente chegara a sua vez no
caixa. Azânia entregou o dinheiro, agradeceu e saiu, deixando o troco de alguns
centavos e o cupom fiscal para trás. A cinquenta metros do ponto de ônibus, ela
viu o transporte se aproximando. Mesmo na chuva, ela correu com o guarda-chuva
fechado para não perder mais tempo. Nesse trajeto, pisou com o pé direito em
uma poça enlameada e encharcou e embarrou o tênis, mas conseguiu subir no
ônibus. Sentada no único assento que estava livre, com o pé cheio de barro, a
meia molhada, sentiu que algo escorria de sua vagina. Em silêncio, pediu aos
céus que o sangue não atravessasse a calça jeans. Com um olhar perdido para o
lado de fora das janelas embaçadas do transporte coletivo, mentalmente xingou
com todos palavrões conhecidos em português, espanhol, inglês e francês esse
dia que começara tão desastradamente. No banco detrás dela, um homem molhado
começou a espirrar ininterruptamente. Ela não conseguia parar de imaginar os
germes viajando por todo veículo escolhendo em qual pessoa iriam aportar como
estações de desembarque.
Ao descer do transporte público,
protegida pela cobertura que havia no ponto de ônibus, ela torceu a coluna
tentando mirar a própria bunda. Não podia ver, mas sabia que uma mancha
vermelha deveria estar lá. Mesmo que estivesse uma manhã fria, ventosa e chuvosa,
Azânia tirou o blusão de lã e o amarrou na cintura. A camiseta branca de
algodão era fina e os pelos dos antebraços se arrepiaram ao primeiro vento que
soprou em sua direção. Ao entrar na biblioteca, ela acomodou o seu guarda-chuva
molhado em um recipiente destinado para esse fim, que já contava com outros
cinco objetos do mesmo tipo. Ela gostaria de poder colocar o seu guarda-chuva
dentro do armário junto com a mochila, mas ele era maior do que o espaço
interno disponível. Carregando um bloco de anotações, a folha com as
referências, duas canetas e um absorvente íntimo, ela se dirigiu diretamente
para o toalete. Dentro de uma cabine privativa, percebeu que o papel higiênico
que ela havia posto dentro da calcinha tinha evitado um estrago maior, mas não
impedira que a calcinha ficasse manchada. Aderido à cavidade vaginal, que
exalava um odor rançoso, o papel coçava e raspava causando pequenas assaduras.
Com os dedos, ela tentou descolar o que estava grudado, mas jamais conseguiria
fazer uma higiene melhor se não lavasse a genitália com atenção. Como não
estava no lugar apropriado para isso, apenas encaixou o absorvente com abas na
calcinha e vestiu as calças novamente. Como Azânia havia imaginado, uma pequena
rodela rubra manchava o seu jeans azulado. Mais uma vez, ela amarrou o blusão à
cintura e foi procurar nas estantes os livros que ela procurava para escrever o
seu trabalho.
Concentrada, lendo, pesquisando,
fazendo anotações, dissertando, Azânia não percebeu as horas passando. Embora o
planejamento fosse fazer uma pequena pausa às dez horas para tomar um café da
manhã na padaria mais próxima, já passava do meio-dia quando a barriga dela
começou a roncar. Em um sábado como este, a biblioteca funcionava em horário
reduzido até as treze horas, por isso ela decidiu aguentar a fome e o frio e
prosseguir nos estudos. Contudo, depois de tantas horas, nessas condições, com
a vagina pinicando, o nariz escorrendo, espirrando aleatoriamente porque vestia
apenas a camiseta de mangas curtas, com o ventre emitindo um barulho semelhante
a um porco, Azânia já não conseguia mais manter a mesma concentração. Enquanto
os seus olhos por detrás das lentes dos óculos corriam uma página do livro,
seus pensamentos estavam vagando em algum ponto muito distante dali: ela
lembrava do ex-namorado, se perguntando por que ele a havia deixado, imaginando
que ainda poderiam estar juntos. Fechou o livro imediatamente ao se dar conta
de que a leitura era improdutiva se realizada enquanto pensava em quem não a
queria mais. Dos doze exemplares que tinha consigo sobre a mesa de estudos,
selecionou cinco para retirar por empréstimo. No fim da fila, aguardando a sua
vez de ser atendida pela bibliotecária, Azânia retomava mentalmente o roteiro
programado para o dia. Muito já tinha sido alterado em função da ida à farmácia
e por não ter tomado o café da manhã. Cogitava a ideia de fazer um lanche na
padaria, tomar o ônibus até o mercado, comprar café em pó e comida, ir para
casa, tomar outro banho, trocar o absorvente, passar um tempo com Lilith e depois
retomar a escrita do trabalho de conclusão de curso. Na sua vez de fazer a
retirada dos livros, antes que pudesse responder a saudação de boa tarde da
bibliotecária, a barriga dela roncou muito alto arrancando risadas das duas
mulheres. Depois de pegar os seus pertences que estavam no armário, ela
acomodou os livros dentro da mochila e partiu rumo à saída onde deveria estar o
seu guarda-chuva. O recipiente, no entanto, estava vazio. A reclamação com o
segurança não resolveu o problema, pois o sujeito apenas disse o óbvio: que
outra pessoa deveria ter pegado o guarda-chuva dela.
Amaldiçoando todas as gerações
passadas e futuras do ladrão de guarda-chuvas, ela estava inconformada com o
acontecido. Caminhando sob a garoa, gritou: maldito seja o ladrão de guarda-chuvas.
Todos que estavam em volta a olharam do mesmo modo como se olha para uma maluca
perigosa. A camiseta branca, molhada, começava a ficar transparente. O desenho
do sutiã estava bastante nítido sob a vestimenta. Azânia não teve outra opção a
não ser desamarrar o blusão de lã da cintura e vesti-lo mais uma vez. Em sua
bunda rebolava a mancha rubra de sangue. A chuva se intensificou de repente,
então ela acelerou o passo rumo à padaria. No caminho passaria pela casa do
ex-namorado, que ficava a menos de vinte metros de distância da panificadora.
As recordações lhe ocorriam, ela se recriminava por tê-las como se tivesse
algum controle sobre isso. Ao tentar não pensar no tema, estava fracassando
justamente por pensar que deveria evitar de pensar no que estava pensando. E
cada vez pensava mais. Concentrou toda a sua energia em praguejar contra o
ladrão de guarda-chuvas. Molhada do jeito que estava, teria que mudar o
planejamento do dia mais uma vez. Não encontrava outro culpado a não ser o
maldito ladrão de guarda-chuvas.
Em frente à padaria, encontrou-a
fechada. Um aviso fixado na porta de entrada informava que o estabelecimento
não abriria em razão de luto. Um senhor protegido sob um guarda-chuva disse a
Azânia que o filho do casal de proprietários havia sido assassinado em um
assalto na noite anterior. Descuidada em seus pensamentos, ela disse para si
mesma: não poderia ter morrido em outro dia? Recriminou-se em silêncio,
tentando evitar de pensar as coisas mais egoístas, mesquinhas e desprezíveis
que às vezes lhe ocorria. Estava faminta, ensopada, suja e mal-humorada. O
ponto de ônibus ficava em frente à biblioteca, então ela teria que retornar
todo o percurso. Sob a chuva, parou diante da casa do ex-namorado. Deveria ou
não bater à porta. O que faria com o próprio orgulho? Ele disse que não queria
mais namorá-la, que seria melhor não se verem mais, o que não deixava nem a
brecha para uma possível amizade. Maldito seja o ladrão de guarda-chuvas,
gritou ela. Não precisaria passar por esse dilema se não estivesse encharcada.
Infantilmente, disse que hoje o mundo estava devendo para ela. Nada havia dado
certo desde o despertar, então essa era a hora do universo demonstrar um pouco
de compaixão. Ela apertou a campainha. Ouviu apenas uma música vindo baixinho
de dentro da casa. Empurrou o botão para dentro uma segunda vez. Nenhuma
movimentação. Indignada com a chuva, com a cidade, com os humanos, com a
faculdade, com a vida, Azânia apertou com raiva a campainha em uma terceira
oportunidade. Imaginou que não houvesse mesmo ninguém em casa, então liberou
toda a sua fúria no dispositivo inocente. Roberto abriu a porta espantado.
O que é isso? Azânia? Ficou maluca?
Desculpe-me, desculpe-me, disse ela.
Meu dia tem sido horrível. Desculpe-me. Eu estava passando na frente da sua
casa. Roubaram o meu guarda-chuva. Estava na biblioteca. Desculpe-me. Mataram o
filho do dono da padaria. O segurança disse que não viu quem pegou o meu
guarda-chuva. Tinha acabado o meu absorvente. Desculpe-me. Pisei em uma poça
enlameada. A Lilith ficou com medo de mim quando eu joguei as cobertas. Minha
barriga está roncando. Fiz o empréstimo de cinco livros. Minha calça manchou.
Vesti o blusão de novo. A velha errou a senha do cartão duas vezes na fila da
farmácia. Tenho três semanas para terminar o meu trabalho. Estava com frio e
espirrando. Não quero pegar uma gripe. Desculpe-me.
Calma, disse Roberto. O que você
quer?
Posso entrar e me secar, perguntou
Azânia.
Não vai dar. Não dá.
Por trás de Roberto, Azânia viu que
uma morena baixinha a espiava. A mulher deu dois passos à frente encarando-a e
chamou pelo homem, que se virou e disse que já estava indo. Azânia pediu
desculpas mais uma vez, virou as costas – Roberto percebeu a pequena rodela de
sangue na calça jeans – e foi embora. Maldito ladrão de guarda-chuvas, gritou
mais uma vez, enquanto se molhava na chuva que não cessava. De novo em frente à
biblioteca, sentou-se sobre o banco no ponto de ônibus. Em torno dela se formou
uma poça d'água. De cabeça baixa, enxergou uma sombrinha vermelha abandonada no
chão. Talvez não estivesse abandonada, alguém poderia tê-la esquecido ali.
Pegá-la seria o mesmo que roubar, seria se igualar ao maldito. Novamente, o
pensamento tolo lhe acometeu: hoje o universo está em débito. Apanhou a
sombrinha sem culpa. Era diferente do maldito, ela sabia que era, isso bastava.
Ao abrir o objeto, notou que três das seis hastes estavam quebradas. Depois de
usada, a sombrinha tinha sido abandonada quando não mais servia. Azânia
enxergou a si mesma naquele objeto dilacerado. Na mesma hora soltou-o no chão e
com o pé embarrado chutou-o para o meio da rua. Um automóvel não conseguiu
desviar e passou com os pneus por cima da sombrinha. De súbito, ela sentiu uma
raiva mortal da morena baixinha que espiava por trás de Roberto. Por uma
daquelas associações irracionais que tomam conta de todo colérico, ela desejava
para aquela mulher um dia dez, cem, mil vezes pior do que este que estava
tendo. Não conseguia aceitar que era indesejada pelo mesmo homem que fazia
companhia à outra. Tinha o orgulho ferido, ensopado, enlameado.
Enquanto aguardava a chegada do
ônibus, dois bêbados encharcados se aproximaram. Azânia, tremendo de medo,
ocupava o banco no centro do ponto de ônibus. Os homens se colocaram cada um de
um lado. Um deles, o desdentado, mal conseguia se sustentar em pé, escorando-se
na placa de publicidade que havia na lateral do ponto, escorregou até cair
sentado no chão. O outro, o barbudo, reclamou com uma voz pastosa e oscilante
que o desdentado estava embriagado demais para seguir a caminhada. Quieta,
Azânia mantinha o olhar para baixo, fariscando o fedor das roupas molhadas e do
absorvente íntimo râncido, ao mesmo tempo em que raios iluminavam o céu e a
chuva se tornava mais intensa. Tentando erguer o desdentado, o barbudo puxava-o
com as poucas forças que ainda lhe restavam. Ainda que tentasse manter um
centro de equilíbrio, os puxões eram cambaleantes e inócuos. O bêbado que
estava em pé soltou o braço do outro quando percebeu que o desdentado urinava
nas próprias calças. Ele voltou para o outro lado xingando o companheiro de
relaxado, porco e comunista – algo que deveria fazer sentido para ele naquele
contexto em que mais álcool corria em suas veias do que sangue. Azânia pulou
para dentro do ônibus assim que este chegou. Deixava para trás aquele cenário
de pesadelo. Tentava acalmar o coração com longas inspirações e expirações.
Ela escolheu um lugar com dois
assentos vazios, pôs a mochila ao lado e se deitou como pôde sobre ela. Estava
torta, mas não estivera melhor neste dia desde que havia levantado da cama.
Começou a espirrar e a sentir arrepios. Sabia que ficaria resfriada, talvez
gripada, maldito ladrão de guarda-chuvas, maldita morena baixinha, maldita
chuva, e poderia prosseguir uma lista longa de maldições, mas estava exausta e
faminta. Tentou apaziguar os ânimos entre um espirro e outro. Azânia desceu um
ponto de ônibus antes daquele mais próximo à sua casa para comprar comida no
mercado. Ela encheu o carrinho com massas, molhos, cereais, congelados,
chocolates, café e seis latas de cerveja. Pensou que depois de um dia desses, deveria
esquecer o trabalho de conclusão de curso pelas próximas horas. Queria se
embebedar e ficar sozinha. No caixa, no momento de fazer o pagamento, descobriu
que a rede de cartão de crédito estava inoperante devido ao mau tempo. Carregava
pouco dinheiro na bolsa, por isso teve que abandonar quase tudo o que tinha
posto dentro do carrinho e conseguiu levar apenas um macarrão instantâneo e uma
lata de cerveja. No trajeto entre o mercado e a casa dela, Azânia foi alvo de
uma onda promovida por um automóvel em velocidade excessiva que arremessou a
água acumulada na pista sobre ela.
Em casa finalmente, o relógio
apontava três horas da tarde de um dia muito longo. A gata Lilith veio
recepcionar a recém-chegada. Depois de farejar os odores estranhos que se
misturaram nos pés e nas vestimentas de Azânia, a gata, carinhosamente, começou
a esfregar o seu corpo nas pernas da mulher. Após afagá-la, Azânia foi tomar um
banho para se recompor. O banho era frio mais uma vez. Maldito, malditos, ela
não sabia exatamente a quem xingar, mas xingou, xingou muito, porque aquilo
parecia lhe aquecer a alma sob a água fria. Espirrando bastante, ela pôs um
blusão de lã sobre outro, pantufas e uma calça de ginástica sob outra de
moletom. Na cozinha preparou simultaneamente um chá e o macarrão instantâneo.
Foi sorvendo lentamente a bebida quente enquanto a massa se soltava do bloco
inicial. Comeu a refeição como se fosse uma homenagem a si mesma por ter
sobrevivido. Embora fosse um prato de preparo rápido, mais veloz foi a
voracidade com que Azânia engoliu o alimento. Jogada no sofá da sala, ela bebia
a cerveja diretamente da lata com Lilith ronronando aninhada sobre as suas
pernas. As unhas compridas da gata afofavam as coxas de Azânia para ajeitar o
melhor lugar para se deitar. Mesmo usando uma calça sobre a outra, as garras
felinas roçavam na pele, provocando uma leve dor como se fossem pequenas
picadas contínuas. Ela sabia o quanto a gata gostava de fazer isso quando
ficavam muito tempo distantes. Era a maneira de uma dizer para a outra o quanto
se gostavam. Um trovão assustou Lilith, que, apavorada, saltou dando a impulsão
com as patas traseiras, arranhando as coxas de Azânia. Junto com a dor, a
ardência a incomodava. No banheiro, lavou os arranhões com água e antisséptico.
A gata permaneceu perto como se quisesse ao mesmo tempo pedir desculpas e ser
protegida das trovoadas.
Eram apenas cinco horas da tarde, o
álcool da cerveja não provocara nenhuma reação aparente, e ela sentia que o dia
tinha que terminar o quanto antes. Deitada na cama, retomou a leitura do poema Uma
temporada no inferno de Arthur Rimbaud, o seu livro de cabeceira. Entregue
às misérias narradas pelo poeta, Azânia queria esquecer um pouco de si mesma. A
tragédia do outro só tem significado quando somos tocados por ela. Apesar de
todas as mazelas, para quem está vivo sempre há um amanhã.
Baixando uma temporada no inferno: http://www.4shared.com/get/rqn559Gf/Arthur_Rimbaud_-_Uma_estao_no_.html
ResponderExcluirHá também uma edição bilíngue publicada pela L&PM Pocket por um preço bem acessível. Acho que paguei R$ 9,90 pelo livro. Recomendo.
Excluir