"Sinisdestra" é um livro de contos interligados por um tema comum a todos.
Você encontra as partes anteriores nas postagens antecedentes.
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16.
No silêncio da noite as
horas eram surdas; a sensação de paz, emudecida. Dois breves
estalidos de vidro se quebrando interromperam a madrugada morta ainda
mais escurecida com o apagar dos postes de iluminação pública. Nas
sombras, dois sujeitos observavam ao seu redor, cuidando as casas da
vizinhança, esperando que olhos curiosos acendem as luzes de seus
dormitórios e mirassem o que ocorria na rua. Se passaram dez,
trinta, sessenta segundos e ninguém apareceu para surpreendê-los. A
calada da noite voltara ao seu silêncio sepulcral, no qual apenas os
habilidosos predadores noturnos conseguiam tomar o que queriam.
A noite será nossa
parceira, disse Leve, enquanto apontava para o casarão abandonado
desde que a guerra havia irrompido.
Vamos entrar, respondeu o
grandalhão Marreta.
Depois de pularem o muro
desguarnecido, os dois assaltantes entraram com certa facilidade no
segundo andar da residência apenas forçando a janela de um dos oito
quartos. Tal como as pirâmides egípcias, aquele casarão tinha em
seu interior tão somente o que ainda não havia sido roubado das
investidas anteriores. O proprietário, o senhor Davi Daniel, um rico
empresário da indústria alimentícia, fora internado em um asilo
pelos filhos logo após se tornar viúvo. Tudo ocorreu logo que o
país foi atacado pelos invasores e a guerra teve início. A senhora
Iolanda Daniel sofrera um ataque cardíaco após ver os bombardeios
pela televisão. Antes de fugirem para o exterior, os filhos
abandonaram o pai em uma casa de repouso, alegando que ele estava
senil demais para viver no exílio. No entanto, após o cessar fogo,
ninguém voltou para buscá-lo. Até agora, os advogados dos filhos
discutem quem por direito deve ficar com o casarão da família.
Desde então, a residência está fechada, mas com acesso liberado
apenas para os bandidos.
Leve e Marreta encontraram o
interior bastante destruído, havia muitos objetos de decoração sem
valor jogados no chão, bem como gavetas com papéis, cadeiras
viradas, livros espalhados e muita sujeira. Todos os aparelhos
eletrônicos há muito não estavam mais lá, mas todos os
malfeitores sabiam das histórias a respeito do cofre oculto do
senhor Daniel. Ninguém ainda o havia encontrado. Seria como
descobrir o sarcófago intacto de um faraó.
Enquanto Marreta percorria
os caminhos mais óbvios, aqueles que estavam bastante revirados;
Leve sugeria que procurassem onde os outros não conseguiam enxergar.
Usando um estetoscópio, este batia nas paredes à procura de um
fundo falso, de algo que indicasse a utilização de um material
diferente na construção, o suficiente para abrigar um invólucro
capaz de conter um tesouro que lhe mudaria a vida. Marreta seguia os
seus instintos sem qualquer planejamento, parecia tonto no meio da
bagunça em que esbarrava no escuro. Com um movimento rápido da
lanterna, ele iluminou um porta-retratos que lhe chamou a atenção.
Pousando novamente a luz sobre a fotografia, encontrou a imagem de
Davi Daniel e do ministro João Remocaim sorrindo um para o outro ao
mesmo tempo em que apertavam as mãos.
Pelos menos o velho da casa
sabe fazer bons amigos, gritou Marreta para que o companheiro de
rapinagem pudesse escutar.
O quê, perguntou Leve, que
veio na direção do outro com a expectativa de que o cofre tivesse
sido achado.
Mostrando a fotografia,
Marreta repetiu o que havia gritado e acrescentou que João Remocaim
era o mais importante político da história do país. Indignado,
Leve perguntou se aquilo era sério ou se tratava de uma piada.
Marreta reafirmou o que tinha dito e repetiu o que ouvia desde
criança em sua comunidade: João Remocaim era o defensor dos pobres.
Atônito, Leve retrucou com o argumento de que o ministro usava a
pobreza dos desvalidos para ganhar popularidade com eles e garantir
uma boa base de votos a cada eleição. Começaram os xingamentos
mútuos em que um acusava o outro de estupidez, então foram ficando
mais nervosos até que apontaram as armas de modo intimidador um para
o outro. Leve convenceu Marreta de que estavam no interior do casarão
com outro propósito que não o de se matarem por causa de uma rixa
política.
Se separaram e continuaram
buscando o cofre secreto de Davi Daniel, mas a história que era
tratada como lenda por alguns bandidos foi lhes angustiando a medida
que reviravam os cômodos e nada conseguiam encontrar. Já havia se
passado uma hora de buscas infrutíferas, quando os dois se toparam
na cozinha. Bastante frustrado, Leve, sem pensar, fez um comentário
ao ver novamente o parceiro: você é burro o suficiente mesmo para
acreditar naquele ladrão do João Remocaim?
Antes de dizer qualquer
palavra, a resposta de Marreta foi um tapa na cara do outro, daqueles
de deixar a marca de cada um dos cinco dedos estampada na face. Leve
caiu de costas sobre um freezer.
Você está xingando a quem,
seu imbecil, perguntou Marreta aos berros. Ladrão é você que entra
na casa dos outros sem saber se esse cofre existe de verdade.
Tentando se levantar, Leve
percebeu que havia empurrado o aparelho com o impacto, e que debaixo
dele havia uma porta de ferro. Marreta perguntou se aquela poderia
ser a abertura do cofre. Afastaram o freezer para o meio da
cozinha e abriram a porta horizontal, tal qual a de um alçapão, que
parecia encerrada há muito tempo, oculta da curiosidade alheia. Uma
escada vertical conduzia a um túnel úmido e escuro. Leve foi o
primeiro a descer. Marreta iluminou a passagem subterrânea com a
lanterna e os dois não enxergavam o final daquela via misteriosa.
Encontraram um interruptor que acendeu a iluminação do túnel,
revelando um belo trabalho de engenharia, tão extenso que apenas
espíritos aventureiros poderiam descobrir aonde haveria de dar. O
cofre estaria na outra ponta, como o pote de ouro no final do
arco-íris? Estavam onde outros assaltantes não tinham estado, então
seguiram em frente na expectativa de um ineditismo que os faria
lendários nas crônicas do submundo. Pelo tempo distendido naquela
travessia, Leve calculou que já haviam caminhado mais de quatro
quilômetros sob a cidade. Marreta começou a ficar nervoso e a
questionar se o outro sabia para aonde estavam indo. É claro que não
tinha a menor ideia, eles eram os bandidos pioneiros naquela
empreitada. Leve pediu que o outro confiasse na sorte e no destino,
porque estavam prestes a mudar de vida. Mesmo sem confiar, Marreta
seguiu adiante, porque voltar seria reencontrar o nada que tinha.
Veja, gritou Leve com
empolgação. Uma porta.
Os dois parceiros correram
até a porta emperrada. Era muito velha, tanto quanto o túnel e o
casarão de onde partiram. Forçaram a passagem até que a abertura
cedeu. Para a surpresa de Leve e Marreta, estavam dentro da
prefeitura municipal, mas não estavam sozinhos. Cercados por cinco
seguranças armados, foram rendidos. Algemado, Marreta só aguardava
a próxima oportunidade para dar mais um tapa na cara de Leve.
Final inesperado,ótimo.
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